Descrição

As características e as diferenças entre o positivismo e o interpretativismo e suas concepções sobre o papel dos juízes.

PROPÓSITO

Compreender as características do positivismo e do interpretativismo, suas diferenças e como cada um apreende a função dos juízes é fundamental para uma adequada discussão sobre as posições existentes a respeito do conceito de Direito.

OBJETIVOS

Módulo 1

Reconhecer o positivismo jurídico, suas características e sua visão sobre o papel dos juízes

Módulo 2

Reconhecer o interpretativismo jurídico, suas características e sua visão sobre o papel dos juízes

Introdução

Uma das perguntas mais desafiadoras dentro do Direito é justamente responder sobre “o que é o Direito”. Diversas respostas podem ser dadas: o Direito pode ser o conjunto de normas postas pelo legislador, um instrumento de controle social ou uma forma de garantir a ordem e a paz social. Vemos, então, que existem diversas maneiras de responder a essa pergunta – apenas para listar alguns dos caminhos possíveis.

As diversas respostas possíveis são dadas por certas concepções teóricas acerca do Direito, desde concepções clássicas, como a teoria da lei natural (conhecida como “jusnaturalismo”), até concepções desenvolvidas nas últimas décadas, como é o caso do interpretativismo jurídico. Por isso, o estudo sobre a teoria do Direito é fundamental para analisarmos adequadamente as características do fenômeno jurídico.

Cada corrente teórica, a partir da sua resposta sobre o conceito de Direito, argumenta em uma ou outra direção acerca do papel dos juízes a respeito da definição desse fenômeno (especialmente, sobre a interpretação jurídica). Por isso, devemos voltar nossa atenção para duas tradições teóricas muito influentes nos últimos anos sobre o Direito e o papel dos juízes: o positivismo jurídico e o interpretativismo.

MÓDULO 1


Reconhecer o positivismo jurídico, suas características e sua visão sobre o papel dos juízes

Contextualizando o positivismo jurídico

A expressão “positivismo” não é originária das discussões jurídicas propriamente ditas. Pelo contrário, no geral, o positivismo é associado a uma certa concepção sociológica predominante no início do século XIX, com Auguste Comte (1798-1857). Essa expressão, no entanto, em pouco tempo passou a ser adotada por certa concepção teórica jurídica, que guardava algumas características em comum com a defesa do positivismo sociológico.

No campo sociológico, o positivismo está no cerce da afirmação histórica das Ciências Sociais como conhecimento adequado ao estudo dos fatos sociais, em contraponto com o conhecimento filosófico até então predominante. Esse movimento foi caracterizado por uma afirmação da superioridade dos conhecimentos passíveis de comprovação científica sobre os demais conhecimentos (de caráter fortemente metafísico, como a Filosofia e a religião). Dessa forma, o conhecimento a respeito da sociedade deveria se valer dos mesmos métodos das Ciências Naturais (SELL, 2016). Tal proposta foi adotada também por alguns positivistas jurídicos ao longo da modernidade.

No caso do Direito, o positivismo jurídico associa-se a uma expressão já conhecida anteriormente, o denominado “Direito positivo”. É importante destacar que a expressão “Direito positivo” não era desconhecida antes do positivismo jurídico – desde o período medieval, tendo em vista a exatidão. O Direito (ou lei) positivo era caracterizado em contraponto ao Direito (ou lei) natural. Enquanto a lei natural não decorria de uma escolha humana e sim da ordem presente na própria realidade (que não era construída pelo ser humano, mas tão somente identificada por ele), a lei positiva seria aquela ordem posta pelos legisladores humanos, no uso de sua autoridade (BOBBIO, 1995a).

Embora tenha passado por algumas alterações, o conceito de Direito positivo permanece associado a essa proposta inicial – especialmente em contraposição a “normas não positivadas”. Ou seja, o Direito positivo refere-se ao conjunto de normas estabelecidas por quem tenha autoridade para tanto com a finalidade de regular nossa vida em sociedade. Isso pode se dar tanto de forma escrita (predominante nos sistemas jurídicos ocidentais modernos, especialmente por meio da lei) quanto de forma não escrita (como por meio dos costumes jurídicos, que foram um Direito consuetudinário).

As outras concepções teóricas – que não o positivismo jurídico – também reconhecem o valor e a importância do Direito positivo para a vida em sociedade. Principal autor vivo da teoria da lei natural (ou jusnaturalismo), John Finnis (2007) reconhece a centralidade da lei positiva para o Direito. Da mesma maneira, Ronald Dworkin (2014), principal teórico do interpretativismo, não despreza o papel das leis positivadas para o Direito.

Qual a peculiaridade do positivismo jurídico? Se outras vertentes teóricas também enfatizam a importância do Direito positivo, o que caracteriza o positivismo jurídico?

Essas perguntas envolvem que avancemos um pouco mais nas características do positivismo, e para isso devemos nos dedicar a alguns autores centrais para essa teoria. Embora o positivismo seja uma tradição rica, com autores iniciais de grande importância, como Jeremy Bentham (1748-1832) e John Austin (1790-1859), devemos focar o positivismo jurídico concebido pelos três autores mais influentes no positivismo atual: Hans Kelsen (1881-1973), Herbert Hart (1907-1992) e Joseph Raz.

Dois problemas ocupam o centro da preocupação do positivismo jurídico. Em primeiro lugar, e certamente o problema mais discutido, a questão da validade do Direito. Em segundo lugar, às vezes não tão destacadamente, a questão da interpretação da norma jurídica.

Características gerais do positivismo jurídico

O positivismo jurídico é uma concepção que possui diversas correntes dentro de si, de modo que não podemos afirmar características pacíficas para todas elas. Apesar disso, podemos localizar aspectos gerais que permeiam, em maior ou menor medida, as diversas vertentes positivistas.

A característica central do positivismo jurídico nas discussões sobre a validade da norma jurídica está baseada na rejeição do moralismo jurídico (DIMOULIS, 2018). Para tanto, o positivismo fundamenta-se em duas teses principais: a tese das fontes sociais do Direito e a tese da separação entre Direito e moral.

Tese das fontes sociais

De acordo com a tese das fontes sociais do Direito, o Direito é fruto de uma série de arranjos e decisões oriundos da própria sociedade e que são reconhecidos segundo critérios socialmente fixados, especialmente no que tange à definição de quem tem autoridade para dispor sobre essas ordens, isto é, definição das instituições responsáveis pela criação do Direito. Essa tese se opõe a grande parte do jusnaturalismo, para o qual o Direito se origina de uma decisão da sociedade, porém também da natureza racional humana – não é fruto apenas de características socialmente convencionadas.

As fontes do Direito estão associadas ao consenso social, àquilo que a sociedade reconhece como sendo Direito ou não – claro, não de forma casuísta, mas segundo uma regra de reconhecimento (HART, 2012). A própria sociedade estabelece critérios segundo os quais algo é ou não considerado uma norma jurídica.

Vamos considerar o seguinte:

O que diferencia um grupo de amigos sentados em um restaurante e um grupo de vereadores reunidos na câmara municipal? Imagine que os dois grupos estejam discutindo um projeto para melhorar a arborização na cidade. O grupo de amigos entendeu que o melhor projeto seria a ideia A. Na câmara de vereadores foi decidido que o melhor projeto de arborização seria adotar a ideia B.

Podemos afirmar que ambas as decisões são iguais? Quais das duas será considerada uma ideia juridicamente relevante para o planejamento urbano? Certamente aquela aprovada na câmara de vereadores. Por quê? Porque socialmente se reconhece autoridade à câmara para dispor sobre essas ordens, não ao grupo de amigos. A formação do Direito é essencialmente definida por normas socialmente fixadas.

Convencionalismo

Para compreendermos melhor a tese das fontes sociais, devemos analisar o conceito de convenções sociais. Segundo o positivismo, a partir da tese das fontes sociais, o Direito é fruto de convenções sociais – acordos socialmente reconhecidos que servem à solução de problemas de coordenação.

Para que isso fique claro, precisamos entender o conceito de problemas de coordenação. Imagine que duas pessoas estejam conversando ao telefone:

Caio ligou para Maria a fim de contar sobre o andamento do seu curso de Direito. Após alguns minutos, a ligação falhou e foi interrompida. Querendo continuar a conversa, ambos ficaram ligando um para o outro, porém, por causa disso, nenhum dos dois conseguiu completar a chamada. Após diversas tentativas, Maria desistiu. Assim, Caio conseguiu completar a ligação e continuar a conversa. Após alguns minutos, a ligação foi novamente interrompida. Mais uma vez, ambos ficaram tentando retornar à chamada e não conseguiram. Outra vez, Maria desistiu e Caio conseguiu completar a ligação. Dada a baixa qualidade da operadora de Caio, a ligação foi interrompida mais três vezes. Em todas elas surgiu o mesmo problema: ambos ficaram simultaneamente tentando retornar à chamada, o que os impediu de continuar a conversa.

Nesse exemplo, temos um caso de problema de coordenação. Caio e Maria têm um objetivo em comum (fazer a chamada e continuar a conversa). No entanto, dada a falta de um procedimento que ordene a conduta de ambos, esse objetivo ficou frustrado. É necessário, portanto, que seja criado um acordo para harmonizar a conduta de Caio e Maria e permitir que ambos alcancem seus objetivos.

Após essas diversas tentativas, Maria parou de tentar completar a ligação. A partir da quinta vez, Maria já não tentava mais retornar à ligação, o que permitia que Caio completasse a chamada na primeira oportunidade. Aqui temos a formação de uma convenção social: sempre que a ligação for interrompida acidentalmente, aquele que realizou a chamada deve realizá-la novamente e o interlocutor deve aguardar.

Como isso nos ajuda a compreender o Direito?

De acordo com o positivismo jurídico, as normas jurídicas são convenções sociais que tornam previsíveis as condutas, evitando os problemas de coordenação e garantindo um procedimento equitativo entre os destinatários das normas. Qual veículo tem preferência ao cruzar uma esquina não sinalizada (para evitar uma colisão)? Qual o prazo para o recurso X (de modo a evitar dúvida sobre até quando ele deve ser recebido)? Qual a pena máxima para o crime Z (a fim de evitar a aplicação desigual entre casos semelhantes)?

Comentário

O problema – antecipando as críticas do interpretativismo – é que o positivismo não apenas aceita convenções sociais, mas também sustenta que o Direito se resume a elas (por isso o sufixo -ismo). Haveria uma equiparação do Direito às previsões da lei positiva. Fora das previsões da lei positiva, haveria apenas pretensões, interesses desejáveis, mas sem correspondente amparo jurídico.

Tese da separação entre Direito e moral

Em outros termos, essa tese pode ser definida como a tese da não necessária conexão entre Direito e moral. Em maior ou menor intensidade, essa tese permeia as diversas vertentes do positivismo jurídico.

Para compreendê-la melhor, é importante lembrar a diferença entre “necessário” e “contingente”. Quando afirmamos algo como necessário a certo conceito, estamos dizendo que sem aquela característica não podemos falar naquele conceito. No entanto, quando afirmamos que uma característica é contingente, estamos dizendo que ela pode estar presente ou não naquele conceito.

Por exemplo:

Certo telefone realiza ligações e possui agenda de contatos. Sem a agenda de contatos ele continua sendo um telefone? Nesse caso, essa é uma característica contingente. Agora, se esse telefone é incapaz de realizar chamadas, ele ainda pode ser chamado de telefone? Então, nesse caso, trata-se de uma característica necessária ao conceito de telefone.

Voltemos ao nosso ponto de origem:

Direito e moral estão necessariamente relacionados?

O Direito, para ser Direito, depende de uma conexão com a moralidade?

Alguns positivistas afirmam que essa conexão pode ocorrer de forma contingente, a partir de uma aceitação da moralidade pela própria regra de reconhecimento do Direito. A esta vertente denominamos positivismo jurídico inclusivo ou includente, pois admite a possibilidade dessa conexão, apesar de não se tratar de uma conexão necessária.

Contudo, outros autores rejeitam essa conexão, sustentando que “a moral não pode ser utilizada em nenhuma hipótese como critério de identificação do Direito positivo, tanto no sentido da constatação de sua validade como no sentido da realização de sua interpretação” (DIMOULIS, 2018). A esta vertente denominamos positivismo jurídico exclusivo ou excludente, dada sua rejeição à incorporação da moralidade no Direito.

A versão positivista mais forte, sem dúvida, é o positivismo jurídico exclusivo (hard positivism). Mesmo se considerarmos a versão mais fraca dele (soft positivism), ainda nesse caso teremos o Direito como não dependente da moralidade. Para o positivismo, o Direito não se confunde com a moralidade, e o sistema jurídico independe de considerações sobre a sua justiça ou injustiça. Avaliar uma lei positiva como injusta ou imoral não prejudica sua validade jurídica.

Essa tese tem origem, em parte, na pretensão do positivismo sociológico de delimitar claramente os objetos das Ciências Sociais (incluindo o Direito), de forma a tornar esse conhecimento mais adequado ao modelo científico – tal como presente nas Ciências Naturais. Essa pretensão fica clara em obras como a de Hans Kelsen (1881-1973), que afirma logo no início de sua obra clássica:

Quando a si própria se designa como ‘pura’ teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a Ciência Jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental.

(KELSEN, 2015)

Essa posição de Kelsen foi refinada posteriormente, porém seu núcleo permanece intacto. Isto é, o Direito positivo não está condicionado por um critério moral sobre o que é justo ou injusto. Nesse sentido, Norberto Bobbio torna essa definição ainda mais clara:

A definição do Direito, que aqui adotamos, não coincide com a de Justiça. A norma fundamental está na base do Direito como ele é (o Direito positivo), não do Direito como deveria ser (o Direito justo). Ela autoriza aqueles que detêm o poder a exercer a força, mas não diz que o uso da força seja justo só pelo fato de ser vontade do poder originário. Ela dá uma legitimação jurídica, não moral, do poder. O Direito, como ele é, é expressão dos mais fortes, não dos mais justos.

(BOBBIO, 1995b)

Como podemos perceber em Bobbio, essa separação será feita pelo positivismo por meio de uma ênfase no aspecto positivo (a lei positiva), a qual poderia ser objetivamente conhecida e não dependeria de uma avaliação moral ou política do intérprete ou cientista. A concepção do intérprete sobre aquilo que é bom ou justo não iria interferir na definição do Direito – que existe de forma objetiva, independentemente dessas posições morais e políticas. Para o positivismo jurídico, o Direito, em essência, é uma criação da vontade humana.

Por fim, importa observar que os positivistas não negam a possibilidade de crítica às normas jurídicas ou às práticas sociais. Um jurista pode (e talvez deva) posicionar-se moralmente contra normas injustas (uma norma racista, por exemplo). No entanto, essa crítica não prejudicará a validade da norma. Enquanto ela não for revogada, permanecerá válida.

CARACTERÍSTICAS DO POSITIVISMO JURÍDICO

No vídeo a seguir, o professor Elden Borges esclarece alguns pontos sobre o Positivismo Jurídico – de suas raízes à prática:

As contribuições de Herbert Hart ao positivismo contemporâneo

No século XX, o positivismo jurídico passou por uma grande reformulação. Com a obra O conceito de Direito, de Herbert Hart, inaugurou-se a denominada “teoria analítica do Direito”. A grande característica dessa tradição é uma preocupação com a definição do conceito de Direito – distinguindo-o de outros conceitos e de outros objetos de estudo.

A Filosofia analítica em geral (na qual está inserida a discussão analítica sobre o Direito) tem uma forte preocupação com a análise conceitual. Por isso, caracteriza-se por uma metodologia baseada no estudo da linguagem. Em outros termos, dedica-se à investigação, logicamente estruturada, sobre certos conceitos de grande relevância filosófica – no caso da teoria analítica do Direito, sobre o conceito de Direito.

Hart fundou uma escola tão influente que se tornou mentor de três grandes pensadores posteriores e um marco para as principais correntes atuais da teoria do Direito: John Finnis (referencial do jusnaturalismo contemporâneo), Joseph Raz (defensor do positivismo jurídico exclusivo) e Ronald Dworkin (principal nome do interpretativismo jurídico). O próprio H. L. Hart, após um longo debate com Dworkin (1931-2013), reformulou sua teoria e, em resposta às críticas, elaborou um pós-escrito a O conceito de Direito, que definiu o positivismo jurídico inclusivo atual.

Hart busca fundamentar o positivismo em oposição à versão imperativista dessa teoria. Segundo o positivismo imperativista, o Direito é essencialmente caracterizado por ser uma ordem (coativa, no caso).

No entanto, há um grande problema em caracterizar o Direito dessa maneira:

Seria a ordem do assaltante uma norma jurídica?

Para afastar-se desse problema, Hart destaca algumas características das normas jurídicas. Em primeiro lugar, o Direito define ordens que se aplicam em geral (de forma indeterminada) e não apenas a uma pessoa ou a um grupo específico de pessoas. Isto é, o Direito é caracterizado por generalidade e não por particularidade (ou individualidade) em suas ordens. Além disso, o Direito define ordens que não se extinguem (que não interrompem seus efeitos) com o cumprimento. As normas jurídicas possuem como característica a permanência (o caráter abstrato) e não a transitoriedade (caráter concreto) de suas ordens.

O Direito também é caracterizado por um hábito geral de obediência. Em outras palavras, o conjunto de normas jurídicas é, predominantemente, seguido pelas pessoas. Sua quebra (o descumprimento das normas) é acidental e não predominante. Para os positivistas, é juridicamente irrelevante por quais meios foi obtida essa obediência; o importante é que haja essa observância generalizada. Logo, a figura do soberano mostra-se importante. É necessário que haja uma figura que tenha autoridade e que, em geral, seja seguida pelos demais.

Mas e se essas práticas geralmente observadas forem apenas um costume, um hábito realmente? O Direito não pode ser configurado apenas como um hábito, pois se apresenta como dando ordens às pessoas. Qual a diferença, então, entre regras e hábitos?

As regras em sentido amplo – que não são apenas jurídicas, mas podem ser também regras morais, religiosas ou de cortesia, por exemplo – assemelham-se aos hábitos, pois em ambos há uma convergência de comportamento. No entanto, a convergência de atitude está presente apenas nas regras.

Um hábito descumprido não gera uma crítica, enquanto o descumprimento de uma regra gera. Somente nas regras está presente a crítica, a reprovação da conduta oposta a ela. Essa crítica não é acidental, mas vista como necessária. Caso a regra seja descumprida, entende-se que é devida uma crítica a essa postura.

Existe um aspecto interno importante a caracterizar as regras: elas são vistas pelo próprio agente como algo que deve ser feito. As regras não são simplesmente coisas que são feitas. O agente compreende que tem uma obrigação ao seguir aquela conduta. Nisso distinguem-se a ordem do assaltante e a ordem do Direito. Na ordem do assaltante, o agente foi obrigado a praticar uma conduta, mas não tinha uma obrigação (HART, 2012).

Portanto, o Direito é um sistema de regras sociais:

1

Porque rege os seres humanos em sociedade e sua origem é a própria sociedade.

2

Porque configura um tipo de ação não opcional (uma obrigação).

Suas regras criam obrigações, pois são acompanhadas de uma pressão social significativa pelo seu cumprimento (no caso do Direito, uma sanção). Mas, para Hart, o Direito não se resume às sanções. Afinal, suas regras existem em razão de certos valores promovidos por meio delas. As regras jurídicas criam obrigações para resolver conflitos potenciais entre os nossos interesses.

Por fim, uma pergunta que pode surgir é: toda norma jurídica cria obrigações? Para responder a essa questão, Hart diferencia as normas jurídicas em normas primárias e normas secundárias. As normas primárias são aquelas que criam obrigações, dizendo aos agentes como eles devem agir. Já as normas secundárias são “normas sobre normas”, e regem a criação e o funcionamento de outras normas jurídicas.

Comentário

Tendo compreendido as características gerais do positivismo, podemos analisar sua dimensão interpretativa.

Os juízes e a interpretação do Direito segundo o positivismo

A validade jurídica é bastante explorada ao se tratar sobre o positivismo jurídico. No entanto, igualmente importante é a interpretação do Direito. Essa questão envolve, por um lado, a compreensão do positivismo sobre o ordenamento jurídico e, por outro lado, a discussão sobre como se dá a interpretação – ou como os intérpretes-juízes devem atuar perante o texto legal.

Compreensão sobre o ordenamento jurídico

Embora não se limite a isso, a compreensão sobre o papel do intérprete-juiz para o positivismo está focada, em grande medida, na discussão sobre as características positivistas do ordenamento jurídico (DIMOULIS, 2018). Por ordenamento jurídico compreendamos o conjunto das normas jurídicas positivas e vigentes em dado território. Em síntese, o positivismo compreende que o ordenamento jurídico, por si só, é autossuficiente para ser aplicado, conseguindo adequadamente regular as relações sociais.

Isso não significa que o intérprete não terá funções (terá, como veremos a seguir), mas a origem da discussão parte de três características principais do ordenamento: completude, clareza e coerência (sistematicidade). Vejamos cada uma delas:

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Completude

Todas as relações sociais juridicamente relevantes possuem previsão normativa. Essa característica não significa que todas as relações sociais estão tratadas pelo Direito. Ao contrário, presume que existem inúmeras relações sociais não tratadas juridicamente. No entanto, é exatamente essa limitação que caracteriza os fatos jurídicos. Em outros termos, os fatos sociais em geral são selecionados pelo legislador (autoridade competente) que, sobre eles, faz incidir um conjunto de normas jurídicas. Dessa maneira, certos fatos sociais normalmente são convertidos em fatos jurídicos. Apenas esses fatos sociais (sobre os quais incide uma norma jurídica) são juridicamente relevantes. Portanto, não existe relação social juridicamente relevante sobre a qual não incidam normas jurídicas.

Por exemplo, o namoro e o casamento são duas relações sociais. Ambas possuem características em comum. No entanto, das duas, apenas o casamento é um fato juridicamente relevante. Afinal, somente sobre ele existe um conjunto de normas jurídicas regulando seu início, sua duração, seus direitos e deveres envolvidos. Salvo algum evento anormal (um dos namorados pratica uma conduta que provoca danos morais), o namoro é um fato juridicamente irrelevante – não há incompletude em razão de inexistir regramento jurídico para ele.

Clareza

O ordenamento jurídico prevê soluções objetivas (claras) para os casos que regula; não há grandes problemas interpretativos. É por conta dessa característica que grande parte das vertentes positivistas não dedica muito espaço ou esforço para discussões interpretativas ou sobre o papel dos juízes – como veremos na posição de Kelsen a seguir, basta ao intérprete escolher entre as opções (claramente) disponíveis pela moldura da norma. Essa característica é nítida em certas áreas do Direito, em que os limites são objetivamente fixados, como nas leis de trânsito (se o limite é de 60 km/h, então não há dúvida de que trafegar acima desse limite é uma infração da lei) ou nas normas processuais (se o prazo é de quinze dias úteis, então não há dúvida de que protocolar no décimo sexto dia útil implica a perda do prazo).

Coerência

As normas jurídicas são harmônicas (compatíveis) entre si. Elas não se contradizem, pois o ordenamento jurídico é um conjunto sistematizado de normas, que se organiza no formato de “regra × exceção”, “norma geral × norma específica”, “norma superior × norma inferior” ou “norma anterior × norma posterior”. Por isso, caso haja uma contradição (antinomia), sempre haverá uma solução dada a partir de critérios do próprio ordenamento jurídico (critérios positivos).

Contudo, as três características encontram três grandes obstáculos: lacunas, ambiguidades e antinomias. Vejamos cada uma delas também:

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Lacunas

Em oposição à completude, há situações de lacunas jurídicas. Existem casos juridicamente relevantes (que impactam fortemente a sociedade e, em consequência, o Direito), porém que não possuem previsão normativa positivada.

Ambiguidades

Em contraposição à clareza, há casos de ambiguidade. Existem normas jurídicas que trazem termos vagos ou indeterminados e, por conseguinte, têm diversas interpretações possíveis – aquela moldura de interpretações mostra-se aberta.

Antinomias

Em contraste à coerência, há antinomias jurídicas. Para uma mesma situação existem normas igualmente válidas, que conduzem a direções opostas e não podem ser solucionadas pelos critérios previstos positivamente.

Se esses critérios não são suficientes, é necessário investigar melhor como deve ser o papel do intérprete na concretização do Direito positivo segundo o positivismo. Nesse caso, é fundamental analisarmos a posição de Kelsen.

A proposta interpretativa de Hans Kelsen

Embora seja um dos principais expoentes do positivismo jurídico, Hans Kelsen não foi o seu criador. Embora seja um autor fundante dessa tradição, Kelsen dedica pouco de sua obra à discussão sobre a interpretação jurídica. Vejamos, no entanto, quais os conceitos fundamentais que ele insere nesse debate.

Para Kelsen, o intérprete exerce sua competência de concretização da norma superior, devendo respeitar a moldura por ela criada – chamada de “teorema da moldura”:

Isso significa que a norma oferece ao aplicador um leque de alternativas, cabendo a ele (e somente a ele) decidir qual será efetivamente adotada”.

(DIMOULIS, 2018)

Haverá uma cadeia de concretizações (desde o legislador até o responsável por editar normas infralegais), em que as possibilidades interpretativas serão constantemente limitadas. Por exemplo, originalmente a norma tinha cinco interpretações possíveis. Depois da concretização legislativa, passou a ter somente três, e assim sucessivamente. Desse modo, seria possível chegar à escolha de uma única interpretação.

A autoridade competente tem a competência para escolher qualquer interpretação dentro dessa moldura, mas não fora dela. Esse aplicador não deve, então, tomar uma decisão que desrespeite o conteúdo do Direito em vigor.

(DIMOULIS, 2018)

A autoridade competente exerce uma atividade de caráter cognitivo ao interpretar a norma, pois deve buscar as alternativas existentes dentro da moldura do texto. No entanto, a interpretação também é um ato de vontade, pois o aplicador precisará escolher entre as diversas opções existentes dentro dessa moldura normativa. O problema que Kelsen deixa sem resolução é sobre os métodos para que ocorra essa interpretação – isto é, para que ocorra a delimitação da moldura. Sem critérios, qualquer interpretação pode ser situada dentro dela.

Para resolver esse problema, em geral, os positivistas seguirão a linha de uma interpretação literal, buscando definir o conteúdo do Direito a partir da busca pela definição do texto legal – seja por meio da busca pela intenção do legislador (chamado de originalismo), seja aplicando o sentido usual e semântico do texto legal (chamado de textualismo). Avançar nessa discussão vai além das pretensões de uma apresentação mais ampla sobre o positivismo.

Outro fator a considerar no modelo kelseniano de interpretação diz respeito à sua concepção moral de fundo (KELSEN, 2015). Adotando um ponto de vista relativista, a moralidade é fortemente subjetiva e variável, de modo que não faz sentido associar o Direito – e a sua interpretação – a ela. Portanto, o Direito deve ser interpretado de forma autorreferencial, baseando-se e fazendo referência a outras normas jurídicas positivadas.

Resumindo

Essa busca por uma limitação do objeto do Direito e da interpretação jurídica deve ser encarada de maneira relacionada a uma preocupação democrática dos positivistas – especialmente de Kelsen (2000). Autores como Kelsen buscavam manter a autoridade das escolhas sociais (que são a fonte do Direito nos Estados democráticos) em detrimento dos subjetivismos do intérprete. Se associado à democracia, o Direito positivo deve ter um papel central nas nossas relações sociais.

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MÓDULO 2


Reconhecer o interpretativismo jurídico, suas características e sua visão sobre o papel dos juízes

Premissa

O interpretativismo é, em sua origem e seu conteúdo, definido pelas contribuições de Ronald Dworkin, especialmente em suas críticas ao positivismo jurídico. Geralmente é inserido em um conceito amplo (e pouco claro) de “pós-positivismo”. Ronald Dworkin é, ao lado de Kelsen e Hart, um dos principais autores do século XX e tem uma das teses mais comentadas sobre o Direito.

No século XXI, Dworkin tornou-se grande alvo de contestação, tanto por parte de positivistas quanto por parte de jusnaturalistas. Vejamos melhor sua teoria sobre o Direito – conhecida como “Direito como integridade” – e sua concepção sobre a interpretação jurídica – baseada fundamentalmente na diferença entre regras e princípios.

Conceituando o interpretativismo jurídico

De início, devemos ter em mente que o interpretativismo é um tipo de “não positivismo”, ou seja, nega algumas características do positivismo jurídico. Em especial, para o interpretativismo, o Direito e a moral estão intimamente relacionados, pelo que não é possível definir o Direito adequadamente de modo separado da moral – embora faça essa relação, sua concepção não está assentada em uma ideia de lei natural.

Para compreender melhor isso, devemos observar a diferença entre positivismo e interpretativismo acerca da definição do conteúdo do Direito – definição sobre direitos subjetivos, obrigações jurídicas, poderes, imunidades e sujeições jurídicas.

O século XX foi marcado por uma concentração de definições de Direito com base em seus meios. É o que se dá com as teorias positivistas de Hart e de Kelsen – que pressupõem os meios jurídicos como a pedra de toque para caracterizar o Direito. Há uma preocupação central com os fatos sociais – em outros termos, com a prática jurídica (por exemplo, sobre como uma decisão do parlamento afeta nossa vida). Assim, grande parte da teoria do Direito no século XX está preocupada com elementos descritivos (ou empíricos) para formular seus conceitos de Direito.

Dworkin vai, contudo, em sentido oposto, preocupando-se com os fins do Direito, isto é, considerando que o Direito tem fins, propósitos ou valores que afetam seu conteúdo. Em sua busca por identificar como o conteúdo do Direito é constituído ou determinado, Dworkin tenta se afastar daquelas concepções jurídicas focadas essencialmente em fatos sociais. Sua preocupação não está centrada nos meios do Direito, pois inclui fortemente uma investigação sobre seus fins (COELHO; MATOS; BUSTAMANTE, 2018).

Isso não significa dizer que Dworkin ignora as práticas sociais na definição do Direito. Sua discordância fundamental em relação às demais posições diz respeito à relevância desse caráter finalístico para a identificação do conteúdo do Direito. Para ele, essa definição não diz respeito somente à identificação de certas práticas sociais, mas também (e centralmente) à interpretação de sua finalidade.

A tarefa do intérprete não se confunde com a tarefa do cientista. O cientista não precisa fazer um juízo de valor para obter suas conclusões. Por sua vez, o intérprete do Direito é chamado a realizar esse juízo por meio de uma prática interpretativa sobre o Direito.

Vamos considerar um caso hipotético:

Uma bióloga precisa classificar certa planta como pertencente à espécie A ou B. Um juiz precisa decidir se a liberdade de expressão protege ou não críticas ofensivas em um caso concreto. A bióloga não precisará se envolver moralmente no processo de definição de seu objeto. No entanto, o juiz, para julgar o caso e aplicar a norma, necessariamente se envolve em uma atividade moral, a de julgar os valores em jogo sobre o direito à liberdade de expressão.

O conteúdo do Direito é formado por um ato de ligação entre dois elementos: as práticas jurídicas (um grupo de pessoas reunido em um local chamado de “parlamento” aprovou uma lei com um novo tributo) e as asserções que afirmam o Direito (João tem o dever de pagar determinado tributo).

O ato de unir esses dois elementos por meio de valores é o que diferencia o fato jurídico do fato científico. Na interpretação jurídica sempre há um juízo de valor, que não está presente em conceitos naturais (lembre-se do exemplo acima). Essa interpretação pressupõe a compreensão da finalidade envolvida naquela prática; por isso, esse é um ato sempre valorativo.

O processo interpretativo é o processo de atribuição de sentido a um conjunto de práticas – não apenas o conjunto solto de fatos sociais. O conceito de Direito mais adequado será aquele que possibilite uma melhor compreensão da forma de vida em certa comunidade política, na medida em que construa uma explicação que conforme todas as práticas jurídicas com base nos valores compartilhados por toda a comunidade. Por isso, a compreensão do Direito por meio de conceitos interpretativos será sempre holística (COELHO; MATOS; BUSTAMANTE, 2018).

Comentário

Para compreendermos melhor como isso caracteriza o interpretativismo, devemos perceber como se distingue das concepções jurídicas positivistas.

O interpretativismo como uma teoria não positivista

A divisão entre positivismo e “não positivismo” pode ser abordada a partir de diversas diferenças. Uma distinção fundamental diz respeito à possibilidade de o sistema jurídico vigente em certa sociedade poder (ou não) ser identificado tomando em consideração apenas fatos empíricos e sem assumir nenhuma posição acerca do valor de justiça de suas proposições. Isto é, diz respeito à validade da tese da separação entre Direito e moral.

O conceito interpretativo de Direito vai ser formulado de maneira oposta ao conceito positivista de Direito. Afinal, o conceito interpretativo pressupõe valores na definição do Direito – diferentemente do conceito científico, conceito do qual se aproxima a proposta positivista. Essa é a diferença fundamental para Dworkin.

A divisão entre as teorias do Direito se dá entre aqueles que adotam um conceito científico de Direito e aqueles que adotam um conceito interpretativo (COELHO; MATOS; BUSTAMANTE, 2018). Dworkin se caracteriza como um não positivista.

Como os jusnaturalistas, os interpretativistas negam um conceito científico de Direito. No entanto, a diferença entre ambos será grande no plano político e moral – diferenças que fogem ao nosso interesse neste momento. Os não positivistas em geral negam a tese da separação entre Direito e moral, uma vez que afastam a defesa de uma conexão não necessária (contingente) entre Direito e moral.

Atenção

Não se trata de moral no sentido de fatos sociais que certa cultura aceita e observa (moral em sentido sociológico). Trata-se de moral no sentido normativo, moral como ideal que faz exigências ao Direito, a fim de que possa ser justo. Por isso, em Dworkin, o Direito tem forte relação com a moralidade política, com os valores que sustentam uma boa vida em sociedade.

Apesar disso, mesmo dentro do “não positivismo”, existe uma grande variedade entre as compreensões sobre essa conexão entre Direito e moral, indo de posições mais fortes a concepções mais fracas.

A diferença entre positivismo e “não positivismo”, em última análise, é que, para o positivista, o Direito pode ser explicado fazendo-se referência a práticas jurídicas (descritivas), sem a necessidade de uma instância valorativa (axiológica). O Direito seria definido a partir de fatos sociais. Ao contrário, para o não positivista, o Direito somente pode ser compreendido a partir de uma instância axiológica, que determina a relevância de determinadas práticas jurídicas em detrimento de outras.

Positivistas

A identificação do Direito é uma questão sobre fatos sociais. A questão do valor do Direito é distinta.

Não positivistas

Embora os fatos sociais influenciem na determinação do Direito, as assertivas jurídicas são morais, pressupondo a existência de uma dimensão moral de fundo.

Como podemos perceber, a divergência é se as assertivas morais entram ou não nessa definição. Para uma teoria não positivista, o conteúdo do Direito é definido por fatos sociais e, conjuntamente, por assertivas morais. Por isso, a questão da validade do Direito também é axiológica e não meramente descritiva (COELHO; MATOS; BUSTAMANTE, 2018).

Para o “não positivismo”, como o Direito não é um fato natural (não podemos tratar o Direito como um biólogo trata uma planta ou como um engenheiro trata uma edificação), não se pode justificar a existência de uma proposição jurídica simplesmente recorrendo à existência de um fato social. Será necessário um recurso a algo além dos fatos.

INTERPRETATIVISMO JURíDICO

A seguir, nosso especialista sintetiza o conceito de Interpretativismo Jurídico em contraste ao Positivismo:

O Direito baseado em um modelo de princípios

Segundo o interpretativismo, o Direito moderno é caracterizado por duas características:

1

Em cada sistema jurídico há um corpo substantivo de premissas jurídicas que determina o que deve ser feito em determinado caso. Isso significa que o Direito possui uma resposta, anteriormente determinada, para cada caso que lhe seja apresentado – embora possa ser difícil essa determinação pelo intérprete para casos específicos.

2

As práticas sociais (como Constituições, leis, atos administrativos e decisões judiciais) determinam em parte o conteúdo do Direito; assim, o Direito não se confunde com as exigências da ética. Essas práticas sociais são fatos empíricos que pessoas ou grupos de pessoas fizeram ou disseram sob certas circunstâncias.

A grande questão é definir como essas práticas sociais se relacionam com a determinação das proposições normativas para o caso. Para isso, será fundamental a diferença entre regras e princípios (veremos no próximo item). Conforme a ênfase, teremos um modelo jurídico de regras ou um modelo jurídico de princípios.

Nesse ponto, dois modelos de definição do conceito do Direito se distinguem: a teoria do Direito baseada na regra do reconhecimento e a teoria do Direito como integridade. Esses modelos apresentam critérios por meio dos quais certas práticas sociais serão selecionadas para determinar o conteúdo do Direito.

Dworkin está contrapondo seu modelo ao modelo positivista. Cada modelo apresenta critérios de identificação das práticas sociais como práticas jurídicas. Além disso, tem que explicar como combinar as práticas entre si para definir o conteúdo do Direito (COELHO; MATOS; BUSTAMANTE, 2018).

O modelo jurídico correto varia de sistema para sistema, visto que depende, em grande medida, das práticas jurídicas aceitas por uma comunidade. Não há um único modelo a priori para todos os sistemas jurídicos. Essa determinação dependerá de qual modelo faz mais sentido no contexto das práticas de certa comunidade – qual modelo faz mais sentido para aquela forma de vida.

Dworkin (2010) destaca dois grandes modelos:

Modelo de regras

corresponde ao modelo de determinação do conteúdo jurídico sob a premissa de que é determinado exclusivamente por fatos sociais (práticas jurídicas descritivas).

Modelo de princípios

corresponde ao modelo de determinação do conteúdo jurídico sob a premissa de que é determinado conjuntamente por fatos sociais e por valores, propósitos e fins.

A preferência por um modelo ou por outro depende do contexto no qual ele está inserido. É necessário que seja aquele modelo mais plausível no contexto das próprias práticas jurídicas.

A defesa de Dworkin em favor do modelo de princípios é a de que as práticas sociais que podem importar para o Direito são diversas – a Constituição, as leis e os diversos decretos, mas também as falas de parlamentares, as decisões judiciais e os costumes. Como selecionar aquelas que importam para a determinação da solução de um caso concreto? É necessário recorrer a juízos morais que façam essa seleção.

Dado que as práticas sociais determinam apenas em parte o conteúdo do Direito, a justificação de uma obrigação ou de um Direito depende em grande medida de um juízo de valor. Sendo que, em primeiro lugar, juízos de valor sempre se referem a princípios que devem ser, de alguma maneira, objetivos e universais. Em segundo lugar, valores podem ser verdadeiros ou falsos, ao contrário das normas.

Resumindo

Os valores que definem o Direito não são subjetivos e contingentes, mas objetivos e necessários. A questão é determiná-los. Isso será feito por Dworkin a partir de uma reflexão de teoria política – especialmente em defesa dos valores de uma democracia liberal, como a liberdade e a igualdade política.

Fundamentos da interpretação do Direito em Dworkin

No que diz respeito à interpretação do Direito, o interpretativismo se opõe às propostas comunicacionais sobre o Direito – que destacam o papel da autoridade e o significado semântico dos textos legais (COELHO; MATOS; BUSTAMANTE, 2018).

Enquanto as teorias predominantes buscam conhecer o conteúdo jurídico por meio da busca do significado de um texto legal, Dworkin defende que o conteúdo do Direito não é o mesmo que o significado do texto. Esse conteúdo não tem como ser identificado a partir da busca do sentido dado pela autoridade (o legislador original, por exemplo) ou pelo uso comum do termo (por meio de uma investigação semântica). Assim, sua posição interpretativa afasta-se significativamente do que defende o positivismo.

Para a visão tradicional sobre o Direito, não há justificação moral para a aceitação de certas proposições jurídicas como válidas, de modo que a interpretação jurídica envolve tão somente questões de fato sobre o conteúdo semântico de dada proposição. Além disso, essa interpretação é caracterizada por um atomismo, ou seja, as normas jurídicas individuais possuem primazia explicativa sobre o Direito como um todo.

No entanto, para Dworkin, como o conteúdo do Direito não é determinado pelo recurso a fatos sociais, não é a autoridade o determinante para a interpretação jurídica, e sim os valores ou princípios do Direito. Não se trata, também, de um modelo comunicacional, que enfatize o papel do significado do texto legal, pois esses elementos semânticos são apenas parte da determinação do Direito. Além disso, para Dworkin, o Direito como um todo possui primazia em relação às normas jurídicas consideradas individual ou isoladamente – trata-se de um modelo holístico.

Para compreendermos melhor sua proposta interpretativa, devemos recorrer a uma importante distinção, destacada por Dworkin, entre regras e princípios.

Uma diferença fundamental a respeito das normas jurídicas

A diferença entre normas jurídicas do tipo regra e do tipo princípio tornou-se um ponto central de toda a discussão atual sobre interpretação jurídica. Para que possamos compreendê-la melhor, vejamos as duas normas a seguir.

Princípio

Art. 5º, IV, CRFB/88: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.

Regra

Art. 212, CPC/15: “Os atos processuais serão realizados em dias úteis, das 6 (seis) às 20 (vinte) horas”.

Conforme podemos intuir, a depender do tipo da norma (regra ou princípio), a interpretação será completamente diferente. Quando o intérprete se depara com uma regra jurídica, como vemos no caso da definição dos prazos processuais, não há grande margem de dúvida interpretativa, nem será necessário um recurso profundo a valores para que ela seja aplicada na solução do caso apresentado. Contudo, a exata extensão da garantia da liberdade de expressão é um tema sempre envolto em grande discussão.

Quais seriam, então, as diferenças entre as regras e os princípios jurídicos?

Ideia de Direito

A principal diferença, à luz da discussão sobre os valores vista aqui, diz respeito à relação dessas normas com a ideia de Direito. As normas jurídicas podem ter um conteúdo mais relacionado às exigências de justiça ou podem ser mais indiferentes a isso.

Os princípios são normas com alta carga valorativa, ou seja, o seu conteúdo traz exigências de justiça para o ordenamento jurídico. Servem, portanto, para corrigir eventuais defeitos das regras jurídicas. O exemplo trazido por Dworkin para sustentar isso é o caso Riggs vs. Palmer (também conhecido como caso Elmer):

Elmer Palmer era herdeiro testamentário de seu avô Francis Palmer. Preocupado com a possibilidade de que seu avô mudasse os termos do testamento, em 1889 envenenou-o para garantir a herança.

Para agravar o caso, na época não havia, na legislação nova-iorquina sobre sucessões, qualquer dispositivo que impedisse o assassino de herdar os bens de sua vítima. Então, a pergunta do caso era: Elmer tinha o direito de exigir que lhe fossem transmitidos os bens do avô?

O tribunal entendeu que não, tomando como base um princípio implícito em vários dispositivos jurídicos de que ninguém pode se beneficiar dos crimes que cometeu.

O critério de julgamento desse caso – um princípio – não impediu o recebimento da herança por ser injusto ou imoral. Os juízes alegaram que, no Direito vigente, visto à sua melhor luz, o assassino não tinha o direito que alegava ter. Em razão de seu conteúdo fortemente moral, os princípios permitem suprir lacunas ou, no caso mencionado, como instância mais abstrata, aprimorar o conjunto de regras.

As regras são normas que resolvem problemas funcionais do sistema normativo. Elas estipulam como situações concretas serão resolvidas. Seu conteúdo moral é baixo, porém significativo para a solução de conflitos de interesse que exigem limites mais precisos – como a regra processual aqui elencada.

Nível de abstração

Regras e princípios diferenciam-se quanto ao grau de abstração, isto é, quanto ao nível de indeterminação e vagueza da norma. Enquanto algumas normas apresentam conteúdo mais indeterminado, outras contam com conteúdo bem delimitado.

Os princípios jurídicos são normas com uma linguagem aberta – com um alto nível de indeterminação e vagueza. Logo, o conteúdo dos princípios não tem limites muito precisos. Obviamente, há situações claramente inseridas em dado princípio e outras claramente fora deles. No entanto, também permitem muitos casos cinzentos. Por sua vez, as regras são normas com uma linguagem bem definida, sendo possível ao intérprete prever o seu conteúdo e definir o que se situa dentro delas ou não.

Resumindo

Valendo-nos dos exemplos indicados no início, não há dúvida de que um ato processual realizado em dia não útil está fora da previsão do artigo citado. Não há controvérsia em relação a isso. Todavia, um protesto realizado durante o funeral de uma pessoa pública está protegido pela liberdade de expressão? Nesse caso, a resposta não permite um tipo de recurso a limites claramente estipulados pela previsão constitucional.

Aplicação ao caso concreto

Regras e princípios diferenciam-se quanto à matéria de aplicação, no que diz respeito à relação entre a norma jurídica e sua incidência sobre um caso concreto. De que maneira essas normas são aptas à sua aplicação ao caso concreto?

As regras são aplicadas por meio de subsunção. É verificada a presença de sua hipótese de incidência ou não e, então, a consequência nela prevista é aplicada. Por exemplo, se uma pessoa mata um animal, então não está presente a hipótese de incidência do “homicídio”, que é “matar alguém”. Assim, as regras podem ser totalmente aplicáveis ou totalmente inaplicáveis a certo caso. Diz-se que as regras se aplicam no modo “tudo ou nada”.

Considerando essa característica e que as regras são normas cujo conteúdo é bem delimitado, sua aplicação ao caso concreto é direta, não exigindo definição de seu conteúdo por meio de uma intermediação do intérprete ou por meio de intermediação de outra norma jurídica.

Já os princípios incidem sobre o caso concreto conforme o seu peso naquelas circunstâncias, podendo incidir de forma mais ou menos intensa. São aplicados por meio de ponderação, e não de subsunção. Além disso, como os princípios possuem um conteúdo aberto, sua aplicação ao caso concreto exige uma intermediação. Será necessário que o legislador ou o intérprete atue para definir como se dará essa aplicação. Voltando ao exemplo da liberdade de expressão, será necessário que o intérprete defina qual a extensão desse direito.

Conflito de normas

Por fim, regras e princípios diferenciam-se em situações de conflito normativo. Em certos casos, as normas jurídicas apresentam-se opostas, indicando soluções diferentes para a mesma situação. A questão, então, passa a ser qual delas deve ser aplicada.

Quando regras entram em conflito (ao que se denomina de antinomia), não será possível a aplicação de duas regras opostas ao mesmo tempo. Afinal, como visto, as regras devem ser aplicadas totalmente ou não ser aplicadas. Não será possível aplicar o comando das duas regras ao mesmo tempo e ao mesmo caso. A solução se dará por meio da invalidação de uma das regras, e para identificar qual delas será aplicada, utiliza-se o recurso aos modos de solução de antinomias: regra posterior, regra superior ou regra especial.

Por outro lado, quando princípios entram em conflito, nenhum deles será invalidado. O princípio predominante prevalece conforme as circunstâncias do caso concreto. Em outras circunstâncias, outro princípio pode prevalecer.

Imagine, por exemplo, uma disputa judicial entre um jornalista e um político a respeito da divulgação de certa informação – o primeiro exigindo a garantia da liberdade de imprensa e de informação e o segundo pleiteando a garantia de sua privacidade. Como se trata de uma pessoa pública, a tendência será a prevalência da liberdade de expressão. Isso, contudo, não significa que não haja mais qualquer proteção da privacidade do político – em outro contexto, pode ser que a prevalência se dê nesse direito.

Casos fáceis e casos difíceis

Uma última distinção interpretativa importante, apresentada pelo interpretativismo, diz respeito à diferença entre casos fáceis e casos difíceis.

Os casos jurídicos apresentam, em geral, duas partes: uma dimensão jurídica (ou teórica) e uma dimensão fática (ou empírica). Por exemplo, analisemos o que se dá em uma “ação de investigação de paternidade”.

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Dimensão jurídica (norma)

O Código Civil prevê que o pai tem o dever de reconhecer o filho.

Dimensão empírica (fatos)

O réu está sendo apontado (demandado judicialmente) como pai da criança.

Conclusão

A norma se aplica ou não se aplica? Se for identificado faticamente que o réu é o pai, então ele tem o dever de proceder ao reconhecimento do filho. Se não houver essa identificação, então ele não tem esse dever.

Os casos jurídicos podem apresentar uma controvérsia em sua dimensão jurídica ou em sua dimensão fática. Conforme o local em que se encontre essa controvérsia, estará presente um caso fácil ou um caso difícil. Vejamos o exemplo a seguir.

Caso fácil

João está sendo acusado de ter matado o seu vizinho.

1 Matar alguém é um ato ilícito?
2 João realmente matou seu vizinho?

Caso difícil

Maria está internada, corre risco de morte, mas sua família, por motivos religiosos, não autoriza a transfusão de sangue.

1 Existe o direito a essa recusa?
2 Maria está realmente precisando fazer a transfusão?

Como podemos perceber nos exemplos, cada um dos casos poderá gerar duas controvérsias: a primeira (1) será a dúvida jurídica e a segunda (2), a dúvida fática. Em cada um dos casos, somente uma das perguntas realmente é controversa. A outra pode ser facilmente respondida pelo juiz do caso.

Na primeira situação, temos um caso fácil, pois, sendo produzidas as provas corretas, o caso será facilmente resolvido. O juiz não tem dúvidas razoáveis quanto à pergunta jurídica – é relativamente fácil saber se é lícito ou não matar alguém. Nos casos fáceis, a controvérsia reside sobre a sua dimensão fática (tem-se um desacordo empírico ou fático). Ou seja, a discussão está centrada em se certo fato ocorreu ou não e de que forma ele ocorreu. O Direito é relativamente incontroverso. A disputa judicial será por encontrar as melhores provas para confirmar ou refutar a ocorrência dos fatos alegados.

Nos casos difíceis, a controvérsia reside sobre a sua dimensão jurídica (desacordo teórico ou jurídico). Os fatos são relativamente pacíficos, mas há uma discussão sobre qual direito deve prevalecer e qual sua interpretação. No exemplo, a família da paciente e o hospital confirmam o fato (Maria precisa receber a transfusão de sangue). A disputa judicial é se o Direito ampara ou não a recusa à realização do procedimento. Nesse caso, os fatos estão provados, mas há uma controvérsia sobre qual direito deve ser protegido, sobre qual direito deve ser aplicado para resolver o caso.

Atenção

Como vimos, para Dworkin, um juízo de moralidade (política, no caso) direciona essa interpretação. O intérprete deve considerar o sistema jurídico à luz dos valores que o guiam – que são compartilhados pela comunidade. A decisão, então, não será baseada em uma discricionariedade do juiz, como no positivismo. Afinal, o sistema jurídico é capaz de oferecer respostas para os casos concretos e, seguindo os princípios (valores, fins e propósito do Direito), o intérprete consegue alcançar a melhor resposta possível.

Estudo de caso

Um dos casos mais emblemáticos no Direito constitucional brasileiro dos anos recentes é o caso Ellwanger (HC 82.242), julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Esse caso discutiu a possibilidade de Ellwanger escrever um livro negando o Holocausto e atribuindo a ‘responsabilidade’ pela 2ª Guerra Mundial aos judeus. A maioria entendeu que tal conduta caracterizava racismo. No entanto, os ministros Marco Aurélio e Ayres Britto defenderam que a liberdade de expressão admitia esses pensamentos minoritários e ‘desagradáveis’. De início, a discussão centrou-se no conceito de raça e de racismo. [...]. Os ministros Moreira Alves e Marco Aurélio apreenderam esses conceitos a partir de uma análise histórica e semântica. Sendo assim, o conceito raça seria utilizado para distinguir os diferentes grupos do gênero humano (brancos, amarelos e negros), e não outros grupos, como os judeus. Capitaneados pelo ministro Maurício Corrêa, os demais fizeram uma interpretação teleológica da norma, dando aos termos um conceito histórico, sociológico e cultural. Esta corrente entendeu o racismo como fenômeno social pelo qual um grupo é considerado raça (‘racialização’) – como ocorre com os judeus.

(SOUZA; PINHEIRO, 2020)

O caso girou em torno de duas discussões fundamentais:

1

O que deve ser considerado como “raça” para fins de racismo? Esse conceito inclui os judeus ou não?

2

A liberdade de expressão ampara ideias que implicam a negação de fatos históricos e geram a ofensa a certos grupos sociais?

Recomendação

Considerando a controvérsia judicial e o que foi estudado, reflita sobre como esse caso pode ser compreendido à luz do positivismo jurídico e do interpretativismo, especialmente para responder às duas questões-chave do caso.

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Conclusão

Considerações Finais

O positivismo jurídico e o interpretativismo são concepções sobre o Direito bastante distintas.

Por um lado, o positivismo tem uma pretensão de neutralidade, mas, ao mesmo tempo, não delimita muito a atividade do intérprete. Por outro lado, o interpretativismo rejeita a neutralidade do intérprete, destacando a necessidade de uma interligação entre Direito e moral. Ao lado disso, ressalta a importância da interpretação, especialmente em matéria de princípios e nos casos difíceis.

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