Descrição
A aplicação dos conhecimentos da Microbiologia e da Genética como ferramenta científica para a elucidação de diversas investigações forenses.
PROPÓSITO
Compreender a importância e a aplicabilidade dos conhecimentos científicos próprios da Microbiologia e da Genética enquanto ferramenta para a solução de problemas forenses é importante para a sua formação, pois permitirá sua atuação em uma atividade de muita relevância para a sociedade.
OBJETIVOS
Módulo 1
Reconhecer a aplicação da Microbiologia em investigações forenses
Módulo 2
Justificar a importância da Genética na solução de crimes
Módulo 3
Distinguir a aplicação da Genética nos exames de paternidade/maternidade
Módulo 4
Identificar os limites da Genética como ferramenta principal ou coadjuvante em desastres com múltiplas vítimas fatais
Introdução
Trataremos de dois assuntos arrebatadores que são a Microbiologia Forense e a Genética Forense. Ao estudarem esses assuntos, vocês perceberão como o desenvolvimento do conhecimento científico e das tecnologias aplicadas às ciências é capaz de trazer novas perspectivas para a segurança da população.
A aplicação da Microbiologia, enquanto disciplina forense, tem pouco tempo, cerca de 15 anos. Porém, essa disciplina se tornou tão importante no mundo atual que não apenas pode ajudar as autoridades a resolver um crime, como também pode colaborar para que a população seja devidamente protegida do uso inescrupuloso de microrganismos como arma.
A partir de agora, vocês serão apresentados a uma série de conceitos e referências técnicas importantes para a atuação nessa área.
Durante os estudos sobre Genética Forense, trataremos de três áreas de aplicação da tecnologia do DNA, quais sejam, investigações criminosas, testes de paternidade e identificação de vítimas em desastres, com os conceitos e as técnicas pertinentes ao assunto.
Esperamos que vocês apreciem e compreendam a relevância desses assuntos para a sociedade.
MÓDULO 1
Reconhecer a aplicação da Microbiologia em investigações forenses
MICROBIOLOGIA APLICADA ÀS INVESTIGAÇÕES FORENSES
A Microbiologia Forense é uma disciplina que usa os conhecimentos da Microbiologia para responder a uma investigação. Não há dúvidas que vocês já sabem que a Microbiologia se trata de uma ciência que estuda os microrganismos.
A Microbiologia tem sua origem lá pelos idos de 1660, quando o inglês Robert Hooke teve a genial ideia de observar uma amostra de tecido vegetal através de uma lente de microscópio. Bem, não se sabe, ao certo, o que ele esperava ver, mas Hooke chamou de células as pequenas caixas na composição do tecido vegetal. Os microrganismos, por seu turno, só foram observados, pela primeira vez, uma década depois, pelo holandês Antoni Van Leeuwenhoek, que os chamou de “animálculos”.
Por certo, ao longo de todos esses anos, a Microbiologia evoluiu muito, sendo considerada uma disciplina essencial da área de saúde.
Mas, então, como ela foi parar no campo Forense?
Infelizmente, do mesmo modo que as ciências evoluem, as ações de delinquência também. Por isso, há cerca de 15 anos, de maneira sistemática, a Microbiologia passou a integrar o grupo das ciências forenses e a ajudar a elucidar ações terroristas, o chamado bioterrorismo, e outros biocrimes.
Você sabia
Logo após o início da Primeira Guerra Mundial, a Alemanha lançou uma campanha de sabotagem biológica contra Estados Unidos, Rússia, Romênia e França. Em 1915, um alemão chamado Anton Dilger foi enviado aos Estados Unidos carregando culturas de mormo, uma doença virulenta de cavalos e mulas. Dilger montou um laboratório em sua casa em Chevy Chase, Maryland. Ele usou estivadores trabalhando nas docas em Baltimore para infectar cavalos com mormo enquanto eles esperavam para serem embarcados para a Grã-Bretanha. Dilger era suspeito de ser um agente alemão, mas nunca foi preso. Ele acabou fugindo para Madrid, Espanha, onde morreu durante a pandemia de influenza de 1918. Em 1916, os russos prenderam um agente alemão com intenções semelhantes. A Alemanha e os seus aliados infectaram cavalos de cavalaria francesa e muitas mulas e cavalos da Rússia na Frente Oriental. Essas ações dificultaram os movimentos de artilharia e tropas, bem como os comboios de suprimentos.
Fonte: Wikimedia.
Antes, façamos uma breve análise sobre novas doenças e a possibilidade de propagação dessas doenças com a intenção de causar danos.
DOENÇA INTENCIONAL: UMA ARMA COMO OUTRA QUALQUER
Surtos de doenças infecciosas representam um constante risco para a saúde global. Quem não sabe disso? 2020 vai entrar para a História da Humanidade como o ano em que o mundo contemporâneo parou por causa de uma doença infectocontagiosa.
De modo geral, novas epidemias surgem devido a fatores climatológicos ou geográficos. Quem nunca ouviu falar na varíola? Às vezes, entretanto, a interferência humana na natureza influencia a disseminação de doenças.
Varíola
A varíola é uma doença exantemática causada pelo Poxvirus variolae, que, do século X ao século XX, foi responsável por vários surtos epidemiológicos e ocasionou milhares de mortes em todo mundo. A origem da varíola é muito controversa, mas os primeiros casos que se tem notícias ocorreram a partir do século IV, no Egito, Mesopotâmia, Índia e China. Entre os séculos XI e XV, a varíola atingiu praticamente toda a Europa. Por volta do ano de 1.500, a varíola já estava disseminada pelo mundo.
O primeiro caso da varíola no continente americano data de 1507 e ocorreu na ilha de Hispaniola (atual República Dominicana e Taiti), dizimando metade da população residente. Importada da Espanha, a disseminação da doença por aqui teve franca relação com o tráfico de escravos. Em todo o continente, os povos nativos foram duramente atingidos, inclusive com a extinção de alguns deles.
Algumas zoonoses, por exemplo, saltam para um hospedeiro humano porque o habitat da floresta tropical de ex-hospedeiros animais é reduzido. O desmatamento de áreas montanhosas pode ocasionar inundação de áreas povoadas, levando, indiretamente, a surtos de cólera e de outras doenças infecciosas.
A história conta que, nas guerras medievais, os exércitos catapultavam estercos, corpos e restos mortais de pessoas e animais portadores de doenças infectocontagiosas por cima das muralhas das cidades, a fim de infectar a população e enfraquecer os inimigos, facilitando, assim, a posterior conquista do território. Verdade ou mentira, não importa, a questão é que a manipulação e a distribuição de patógenos com a intenção de desorganizar as sociedades é uma realidade.
Hoje, o uso de armas biológicas faz parte de políticas governamentais, assim como, serve de meio de ação para criminosos e grupos terroristas. Embora, até agora, episódios desta natureza sejam esporádicos, não há dúvida de que o uso deliberado de agentes biológicos é uma ameaça real e representa um risco potencialmente alto. Esse assunto é tão atual que já são aventados regulamentos internacionais mais severos, estratégias de detecção precoce e atividades preventivas integradas e coordenadas globalmente.
Regulamentos internacionais
Em 1925, foi assinado o Protocolo de Genebra, proibindo, em caso de guerras, o uso de gases asfixiantes, venenosos e similares, bem como de métodos bacteriológicos. Posteriormente, em 1967, por meio da Resolução 2162 B (XXI), a Organização das Nações Unidas ratificou a proibição.
No entanto, as nações não têm se mostrado muito afeitas a cumprir com esta regra, desde seu surgimento no início do século XIX. Durante a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha Nazista usou gases tóxicos para exterminar judeus nos campos de concentração.
Armas biológicas
Segundo a Organização Mundial de Saúde, as armas biológicas alcançam seus alvos pretendidos por meio da transmissão de microrganismos causadores de doenças e outras entidades, incluindo bactérias, fungos, toxinas, vírus, ácidos nucleicos infecciosos e príons.
Atenção
Outro aspecto a se pensar com relação a esse tipo de arma é que o uso de microrganismos como armas biológicas não visa apenas matar ou incapacitar a espécie humana, mas também destruir plantações e gado.
O uso de microrganismos como armas biológicas
Notem que os microrganismos podem ser tão mortais que, ainda que não sejam efetivamente usados como armas pelos exércitos, em época de guerra, acabavam levando a óbito mais soldados do que a própria batalha em si.
Dados americanos sobre a admissão de soldados em hospitais em razão de sintomas ocasionados por doenças infectocontagiosas são alarmantes e deixam claro o potencial do uso de microrganismos em guerras.
• Na Segunda Guerra Mundial: 95% dos soldados americanos saíam de combate e iam parar
nos hospitais em razão de doenças infectocontagiosas (percebam que somente 5% dos
pacientes que davam entrada nos hospitais apresentavam ferimentos de guerra).
• Na Guerra da Coreia, em 1950, o número de soldados americanos incapacitados de
combater por causa de doenças infectocontagiosas foi em torno de 82%.
• Na Guerra do Vietnã, só a malária tirou entre 56% a 75% dos soldados de combate,
conforme à época.
Em 1972, 170 países assinaram a Convenção sobre as Armas Químicas e Biológicas, comprometendo-se a não desenvolver, produzir e armazenar esse tipo de armamento em seus territórios. Como a convenção internacional não previu nenhum tipo de fiscalização e considerando que um país consegue, facilmente, esconder um programa de armamento biológico “sob o tapete da sua casa”, o mundo não é um lugar seguro.
BIOTERRORISMO
O bioterrorismo é a disseminação deliberada de vírus, bactérias ou outros agentes com a intenção de causar doenças ou morte em pessoas, animais ou plantas, e, também, de contaminar prédios e locais públicos. Ações bioterroristas têm por objetivo causar terror, perturbação social ou perdas econômicas, e são motivadas por crenças ideológicas, religiosas ou políticas. É o que chamamos do “modo de agir do fanático”.
O fanatismo, seja ele religioso, político ou ideológico, é muito prejudicial, pois indica que a pessoa aderiu cegamente a um sistema ou doutrina de forma obsessiva e apaixonada. Em situações em que a pessoa perde contato com a razão, pode cometer ações de intolerância extremadas.
Percebam que dada a necessidade de operar sem chamar a atenção e com meios relativamente limitados, os bioterroristas, por sorte da humanidade, encontram dificuldades para desenvolver, construir e realizar um ataque biológico em grande escala bem-sucedido. Por outro lado, o sucesso da maioria deles provavelmente será definido pela quantidade de perturbação social e pânico, e não necessariamente pelo número de vítimas. Assim, adoecer apenas alguns indivíduos com o uso de métodos rudes pode ser suficiente, desde que crie o impacto pretendido.
Comentário
É sempre bom lembrarmos que, do mesmo modo que a ciência do bem avança, aquela que causa dor, sofrimento e pânico avança junto.
O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), nos Estados Unidos, considera que, com relação ao potencial de ameaça à saúde e à segurança, existem três grupos de agentes biológicos:
Aqueles que afetam apenas os seres humanos.
Aqueles que afetam apenas a agricultura e a pecuária.
Aqueles que afetam os seres humanos, a agricultura e a pecuária.
Preparação do Rio de Janeiro para enfrentar eventuais ações bioterroristas nos Jogos Olímpicos de 2016
O CDC estabelece, ainda, três categorias de patógenos para fins de bioterrorismo, conforme mostrado no quadro abaixo: Tabela: Categorias dos agentes biológicos de acordo com a potencialidade para utilização enquanto arma biológica. Fonte: CDC, 2014 apud Rambauske, 2014.
BIOCRIME
A diferença entre biocrime e bioterrorismo está apenas na ação motivadora.
Bioterrorismo
O que move um terrorista são suas crenças, sejam elas políticas, religiosas ou ideológicas.
Biocrime
O criminoso faz uso de agentes biológicos para matar ou incapacitar, desde um único indivíduo até um grupo de pessoas, motivado por vingança, ganância, poder ou qualquer outra razão, que não seja crença.
Atenção
No tocante aos crimes, de modo geral, a diferença entre eles e o biocrime é que, no biocrime, a arma escolhida pelo criminoso para praticar sua ação delituosa é um patógeno ou toxina.
No Brasil, ainda não há nenhuma exigência legal a ser tomada por médicos quando há suspeita que uma pessoa foi vítima de um ataque biológico, como já há, por exemplo, para crianças supostamente abusadas sexualmente ou em caso de indivíduos feridos por arma de fogo. Nessas situações, o serviço médico deve comunicar o fato às autoridades policiais. Nos Estados Unidos, no entanto, isso já é uma obrigação. Assim, naquele país, caso o serviço médico suspeite da ocorrência de intoxicações e infecções ocasionadas por patógenos com potencial para ser usado como arma biológica, deve, imediatamente, comunicar às autoridades policiais.
Comunicar às autoridades policiais
Situações observadas nos serviços de saúde americano que devem ser, imediatamente, comunicadas às autoridades legais:
• Casos de doença, normalmente, não observados na área geográfica.
• Distribuição incomum de casos entre segmentos da população.
• Índices de doença significativamente diferentes dos do interior e exterior de
edifícios.
• Surtos separados em áreas geograficamente diversificadas.
• Surtos múltiplos simultâneos ou em série de doenças diferentes na mesma população.
• Vias de exposição incomuns (como inalação).
• Uma doença que normalmente afeta animais em humanos.
• Uma doença que normalmente afeta animais surgindo em uma área na qual essa espécie não
está presente.
• Gravidade incomum da doença.
• Cepas incomuns de agentes infecciosos.
• Insucesso em responder à terapia padrão.
Fonte: Manual MSD.
Reparem que o que se busca com essa notificação compulsória é detectar, de forma antecipada, o uso de patógenos conhecidos ou desconhecidos como arma biológica e, desta maneira, garantir que eventuais ações necessárias à proteção da população possam ser adotadas. Lembrando que, como se trata de agentes biológicos, qualquer medida a ser adotada deve ser baseada exclusivamente em conhecimento científico.
O uso de agentes patogênicos para a prática de crimes tem uma vantagem para os criminosos. Como, por via de regra, há um período de incubação entre a introdução do patógeno no organismo e o aparecimento dos primeiros sintomas, o criminoso consegue estar distante das vítimas, quando estas começam a adoecer, dificultando, como no caso ocorrido no Texas, a sua identificação. Outro aspecto característico deste tipo de crime é que, minimamente, o criminoso deve ter conhecimento sobre Microbiologia.
No caso ocorrido no Texas
Em 1996, em um hospital, no Texas, 12 pessoas que estavam trabalhando ficaram doentes após comer bolinhos que estavam à disposição no dormitório.
Exames periciais realizados nos bolinhos que não foram consumidos revelaram a presença de Shigella dysenteriae, o mesmo patógeno que infectou as pessoas. Com isso, a ação criminosa foi confirmada. Entretanto, o criminoso não foi identificado.
Até o momento, não são muitos os casos de biocrime. No entanto, considerando a ocorrência natural e abundante de doenças infectocontagiosas, é possível que a detecção de crimes perpetrados com o uso de agentes biológicos seja ineficiente e que esse tipo de conduta criminosa seja mais comum do que imaginamos.
DIAGNÓSTICO E ESTUDO EPIDEMIOLÓGICO EM INVESTIGAÇÕES MICROBIOLÓGICAS FORENSES
As investigações Microbiológicas Forenses são essencialmente as mesmas que quaisquer outras. Elas envolvem:
Investigação da cena de crime
Práticas de cadeia de custódia
Coleta, manuseio e preservação de vestígios biológicos
Análise
de amostras
Interpretação de resultados
Apresentação em tribunal
Além de coletar e analisar evidências forenses tradicionais, a investigação forense tentará determinar a etiologia e a identidade do agente causal, muitas vezes, de maneira semelhante a uma investigação epidemiológica. No entanto, para essa atribuição, é necessária uma caracterização rápida e de alta resolução.
Um diferencial das amostras microbiológicas forenses é que, em se tratando de pessoas que procuraram o serviço médico devido a sintomas de saúde, as amostras são coletadas ali mesmo e não por peritos oficiais. Assim sendo, a fim de não haver quebra da cadeia de custódia e, consequentemente, da validade da prova material em juízo, é importante que, no momento da coleta do material, sejam adotados todos os cuidados técnicos recomendados e que as amostras sejam devidamente documentadas e adquiridas em abundância, para a hipótese de serem necessárias mais análises.
As análises laboratoriais forenses usadas para amostras microbianas podem incluir sequenciamento molecular, culturas microbiológicas, bioquímica, microscopia eletrônica, cristalografia e espectrometria de massa.
As análises de ácidos nucleicos são, certamente, o carro chefe dos exames microbiológicos forenses, pois podem relacionar o genoma do patógeno a fontes específicas. Esta análise é análoga à análise forense de DNA humano, amplamente usada para processar criminosos e exonerar inocentes, entre outras funções, como veremos.
Atenção
Atentem-se que existem diferenças importantes entre as análises de genomas microbianos e aquelas usadas em análises forenses de DNA humano. Por causa do grande número de patógenos potenciais que poderiam ser empregados como uma arma biológica, identificar marcadores genéticos para microrganismos é uma tarefa mais desafiadora do que identificar o DNA humano.
No caso da identificação humana, apenas uma espécie está envolvida e, muitas vezes, é possível identificar uma pessoa de forma personalíssima. Os vírus e a maioria das bactérias são haploides e se reproduzem, em geral, assexuadamente, mas também podem evoluir por recombinação, transferência horizontal de genes e duplicação de genes. Portanto, as metodologias estatísticas e a interpretação exigirão ferramentas diferentes das usadas atualmente para comparar e estimar a raridade de perfis de DNA humano (diploide). No entanto, ressalta-se que eventuais obstáculos devido à complexidade genética podem ser reduzidos com a obtenção de amostras o mais cedo possível.
Notem que, em se tratando de mera suspeita de um crime biológico, diante do universo de patógenos, as autoridades devem agir, como já dito, o mais rápido possível para garantir a proteção da população. Isso porque não há dúvidas quanto ao potencial patogênico das armas biológicas.
Universo de patógenos
Tendo em vista a variedade de microrganismos e a pluralidade de doenças, desde as assintomáticas até aquelas 100% letais, as armas biológicas exigem que toda a cadeia de ações adotadas pelas autoridades seja diligente, dinâmica e eficiente. Nestes casos, a frase “qualquer erro pode ser fatal” é aplicada com maestria.
Recomendação de protocolos e práticas
É imprescindível que se obtenha um diagnóstico rápido e seguro e que, em seguida, seja realizado um amplo estudo epidemiológico sobre o patógeno em questão, incluindo análises de período de latência, incubação e transmissibilidade; formas de transmissão, intervalo serial, infectividade etc.
O conhecimento dessas informações irá subsidiar tomadas de decisões importantes, como isolamento de pessoas ou de comunidades; definição da área de isolamento; estabelecimento de período e modelo de quarentena; treinamento de profissionais de diversas áreas e da população; medidas de vigilância; métodos de profilaxia e tratamento; nível de equipamento de proteção individual requerido etc.
MICRORGANISMOS E SUAS APLICAÇÕES COMO FERRAMENTAS FORENSES
Vejamos agora duas aplicações relativamente recentes, mas muito interessantes, de como os microrganismos podem colaborar com as investigações forenses. Observem que essas aplicações ainda não estão sendo plenamente aplicadas e precisam ser melhor estudas para garantir a confiabilidade e a reprodutibilidade de seus resultados.
Exame de microbioma humano
Microbioma ou microbiota humana é o conjunto de microrganismos que residem, em simbiose, nos tecidos e fluidos humanos vivos. Essa população é composta, principalmente, de bactérias, mas também inclui vírus, fungos e arquea. E não pensem que ela é pequena: estudos sobre o microbioma humano revelaram que 75 a 90% das células, no corpo, antes da morte, são microbianas.
Arquea
Domínio de seres vivos composto de microrganismos unicelulares procariontes.
Atenção
Cada local anatômico possui a sua microbiota específica. Além disso, ao longo da vida de uma pessoa, a população de microrganismos sofre alterações, devido a vários fatores, tais como: clima, localidade, idade, estilo de vida, sistema imunológico, doenças e uso de medicamentos.
Como o mix de microrganismos de um indivíduo é uma característica muito particular, ele pode ser usado para conectar um suspeito ao local do crime. Além disso, os fatores que dissemos há pouco que são responsáveis por variar o microbioma de uma pessoa, ao longo da vida, podem ser usados para diminuir o rol de suspeitos, pois, por meio da análise da microbiota, é possível inferir o sexo, a idade, o estilo de vida, como, por exemplo, se a pessoa é fumante ou se faz uso de algum medicamento regularmente, entre outras características.
É importante lembrar que, uma vez que a análise da microbiota é baseada em exames de DNA, possivelmente, na amostra biológica da qual se extraiu o material genético para a identificação dos microrganismos de uma pessoa, também há material biológico desta mesma pessoa. Neste caso, não faria o menor sentido examinar tal microbiota, não é mesmo?
Outras críticas a essa técnica são: |
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Se a microbiota de uma pessoa varia ao longo do tempo, então, sua capacidade informativa sobre um suspeito é limitada. |
Se a pessoa fizer uso de determinadas substâncias, poderá alterar rapidamente seu padrão de microbiota. |
Necessidade de uma biblioteca de microbiota por pessoa e, possivelmente, por fases da vida. |
Biblioteca
Hoje, existem bibliotecas de impressões digitais, nas quais são mantidos os registros datiloscópicos das pessoas.
Atualmente, análises da microbiota humana podem ser úteis para auxiliar o direcionamento de uma investigação. No entanto, essa metodologia é ainda muito recente e precisa evoluir bastante para que suas análises sejam aceitas como prova material em juízo.
Exame do microbioma post mortem
Outro ramo recente de aplicação da Microbiologia Forense diz respeito à determinação do intervalo post mortem através do estudo do exame do microbioma de um cadáver.
Como aprendemos ainda pouco, 75 a 90% das células, no corpo, antes da morte, são microbianas. Contrariando o que se pensava, os órgãos internos de um indivíduo não são estéreis, ou seja, parte dessa populosa microbiota também pode ser encontrada nesses locais. Além disso, é bom lembrar que o processo de decomposição de um cadáver começa logo depois da morte e é mediado por bactérias.
Com base nisso, cientistas forenses estão estudando o papel que a microbiota, sobretudo a oral, a intestinal e a de outros órgãos internos, desempenha na forma como o corpo se decompõe após a morte.
O estudo do microbioma post mortem (tanatomicrobioma) é baseado na identificação das espécies bacterianas envolvidas na decomposição do corpo humano, considerando as sucessivas mudanças dessa população ao longo dos estágios de decomposição. Para a identificação da microbiota em cada um desses estágios, é utilizada a tecnologia do DNA.
Ainda que a técnica seja incipiente e vários fatores ambientais interfiram nos resultados, como temperatura, umidade, pH, disponibilidade de oxigênio, os cientistas forenses acreditam que a análise da microbiota poderá ser usada para determinar a hora da morte com uma relativa precisão.
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MÓDULO 2
Justificar a importância da Genética na solução de crimes
GENÉTICA APLICADA ÀS INVESTIGAÇÕES CRIMINAIS: GENÉTICA FORENSE
O uso do conhecimento genético em investigações criminais é, sem dúvida, algo relativamente novo e revolucionário, conforme veremos ao longo dos nossos estudos. Antes de começarmos a tratar da aplicação dos conhecimentos genéticos em prol do sistema judiciário e de apresentarmos alguns casos reais que ilustram bem essa questão, vamos descobrir como tudo isso começou.
BREVE HISTÓRICO EM GENÉTICA FORENSE
Somente a partir da década de 1970, os avanços na Genética permitiram que esta fosse usada, já desde 1986, como ferramenta forense na identificação segura de pessoas.
Conheça como começaram os estudos genéticos, até a descoberta tridimensional da molécula do DNA, muito antes de existir a Genética Forense
O fato de os filhos se parecerem com seus pais ou de animais apresentarem características semelhantes às de seus progenitores foi percebido há bastante tempo. Por conta disso, acreditava-se que parte dos corpos parentais se misturava para formar o novo indivíduo.
A partir do século XIX, vários estudiosos começaram a questionar a ideia de a herança biológica ser uma mera mesclagem, haja vista que os filhos nem sempre eram uma mistura intermediária dos caracteres dos pais. Naquela época, as pesquisas, feitas sem rigor científico, baseavam-se em analisar características semelhantes e contrastantes entre os pais e sua prole. No entanto, os estudos incipientes deixavam de lado o significado das diferenças individuais.
Empregando o método científico, a partir de experimentos realizados com as ervilhas que dispunha no espaço limitado do jardim do mosteiro onde vivia e trabalhava, Gregor Mendel contou e classificou as ervilhas resultantes de cruzamentos feitos por ele mesmo, comparou as proporções com modelos matemáticos e formulou hipóteses para explicar essas diferenças em termos individuais.
Em 1866, os estudos de Mendel foram publicados. Entretanto, o mundo científico da época não foi capaz de valorizar a importância de sua pesquisa. Isso só ocorreu no início do século XX, quando três botânicos, simultaneamente, mas de maneira independente, confirmaram as evidências de Mendel. E assim, a ciência da hereditariedade, que ficou conhecida como Genética, despontou.
Notem que, ao longo do século XIX, várias pesquisas foram feitas e o conhecimento genético foi se ampliando e se consolidando. A estrutura tridimensional do DNA, por exemplo, só foi descoberta em 1953, pelos pesquisadores Francis Crick, James Watson e Maurice Wilkins. Contudo, sua aplicação ainda estava longe dos tribunais e do contexto jurídico.
Entre esses avanços, três merecem destaque:
Por volta de 1975
O inglês Frederick Sanger sequenciou moléculas de DNA, mostrando que, se a replicação do DNA fosse interrompida em pontos diferentes, seria possível juntar esses fragmentos menores e, novamente, formar a sequência do DNA completa.
Na década de 1980
A pesquisa de outro inglês, chamado Alec Jeffreys, mostrou que todos os indivíduos poderiam ser identificados a partir de um padrão específico de seu DNA.
Ainda na década de 80
O americano Kary Mullis descobriu como gerar, a partir de uma única cópia ou de poucas cópias de um segmento de DNA, milhares de cópias. Essa técnica ficou conhecida como Reação em Cadeia da Polimerase ou PCR, que é a sigla, em inglês, de Polymerase Chain Reaction.
Em Biologia Molecular, a geração de várias cópias de uma dada sequência de DNA, a partir de um fragmento de DNA, é chamada de amplificação.
Considerando que o DNA pode ser encontrado em todos os fluidos e tecidos biológicos humanos, vocês conseguem imaginar como as novas possibilidades de aplicação da biologia molecular trazidas, a partir das pesquisas realizadas pelos cientistas acima mencionados e tantos outros, foram e são consideradas uma verdadeira revolução na área criminal?
Um caso específico, o de Colin Pitchfork, foi bastante emblemático e, além de mostrar o enorme potencial do uso de exames de DNA para a solução de crimes, a reboque, deu início a discussões filosóficas e jurídicas quanto ao emprego da tecnologia de DNA para fins de identificação criminal de pessoas.
Em 1983, em Narborough, que fica no condado de Leicestershire, na Inglaterra, uma moça de 15 anos foi estuprada e assassinada. Sem pistas do crime, a polícia recolheu, no corpo da garota, amostras de sêmen. Três anos depois, perto de Narborough, outra mocinha de 15 anos foi encontrada morta. Os exames feitos no corpo da garota revelaram que ela também havia sido estuprada. O crime chamou a atenção da polícia, pois se assemelhava àquele ocorrido anteriormente, ainda sem solução. De novo, os peritos realizaram a coleta de amostras de sêmen no corpo da vítima. Após este segundo caso, um homem chamado Richard Buckland confessou ter realizado os dois crimes. No entanto, sua história não convenceu os policiais. Por sorte, esses dois crimes ocorreram em Leicestershire e os policiais envolvidos nas investigações, de algum modo, souberam do trabalho do geneticista Alex Jeffreys, professor da Universidade de Leicester.
No ano anterior, em 1985, Jeffreys havia publicado um artigo na revista Nature, dizendo que seria capaz de identificar pessoas através de testes de DNA. Munida das amostras de sêmen coletadas no local dos delitos, a polícia procurou Alex Jeffreys. Este explicou aos policiais que os testes de DNA eram comparativos e, já que os investigadores queriam confirmar se Richard Buckland havia, de fato, cometido os dois crimes, era preciso que Buckland fornecesse amostras de seu material biológico também.
Ao compararem o DNA das duas amostras de sêmen entre si e com a do material genético fornecido pelo então suspeito, Alex Jeffreys concluiu que o sêmen encontrado nas vítimas não pertencia a Richard Buckland. Além disso, o geneticista constatou que o esperma proveniente das duas amostras questionadas pertencia a uma mesma pessoa, cuja identidade, à época, não podia ser revelada por falta de material padrão para fins de confrontação.
Como, àquela altura, ainda não havia lei que regulamentasse a coleta de material biológico para identificação criminal, para identificar o culpado dos crimes, Jeffreys e os investigadores bolaram uma campanha estimulando a população de Narborough a doar sangue. Por conta da ação, Jeffreys comparou mais de 3.600 amostras de material genético com aquelas mantidas pela polícia. Entretanto, segundo o geneticista, nenhum daqueles homens poderia ser o estuprador.
Em 1988, entretanto, a polícia soube que, na época da campanha de doação de sangue, um homem, chamado Colin Pitchfork, pediu ao amigo Ian Kelly para que este doasse sangue em seu nome. De posse dessa informação, a polícia foi atrás de Pitchfork, que forneceu seu próprio sangue para a realização de novos exames de DNA comparativos. Os resultados mostraram que Colin Pitchfork teve relação sexual com as duas meninas. Sem ter como negar essa evidência, o homem acabou confessando ter cometido os dois crimes.
Ao longo do nosso estudo, vamos falar um pouco mais sobre essas questões. Mas, antes de avançarmos, vamos rever alguns conceitos em Genética que são indispensáveis à compreensão da razão pela qual o exame de DNA tornou-se uma das mais importantes, senão a mais importante, ferramenta forense empregada pela polícia e pela justiça na identificação de criminosos e na absolvição de inocentes.
O que é Genética?
Por certo, vocês sabem que a Genética é a parte da Biologia que estuda a hereditariedade, ou seja, a maneira como a informação relativa aos caracteres biológicos é mantida e transmitida através das gerações. Vocês também devem se recordar que o processo de transmissão da herança genética segue um padrão quanto à expressão das diferentes características alternativas.
Por conta da “previsibilidade” de transmissão da informação genética, os conhecimentos dessa área são muito importantes e bastante utilizados, entre outros propósitos, para fins de identificação humana.
Vocês se recordam onde as informações genéticas de um indivíduo ficam armazenadas? Quem pensou em DNA acertou.
O que é DNA?
Resumidamente, podemos descrever o DNA como uma molécula orgânica, que se apresenta como uma longa fita torcida, formada por duas cadeias que se complementam. Essa fita é uma estrutura formada a partir da união de várias partes menores, que chamamos de nucleotídeos.
Outro aspecto interessante da molécula de DNA é a maneira como os nucleotídeos se unem para formar uma cadeia e como esta se une à outra para formar uma dupla hélice. Vejamos como isso funciona na imagem a seguir.
Os nucleotídeos são unidos entre si pelo grupamento fosfato de uma base e a pentose da base seguinte, formando uma cadeia longa, na qual as bases nitrogenadas ficam expostas nas laterais. Uma cadeia longa se une à outra de forma complementar, a partir das bases nitrogenadas de cada fita, que formam pontes de hidrogênio entre si, de uma maneira específica, onde uma base de Adenina (A) se pareia com uma base de Timina (T), e uma base de Citosina (C) se pareia com uma base de Guanina (G). Esse tipo de ligação favorece o pareamento de duas cadeias complementares, formando uma molécula na qual duas fitas orientadas em direções opostas são pareadas e enroladas entre si, com o formato semelhante a uma escada em espiral, a qual é conhecida como dupla hélice.
Onde podemos encontrar o DNA? Como eles estão organizados?
Todo material de origem biológica, como o sêmen do caso de Colin Pitchfork, contém DNA. De modo geral, vamos considerar que o DNA está presente em todas as células de todos os seres vivos, sendo que, nos homens e nos demais seres eucariotos, o DNA é encontrado no núcleo das células, organizado em estruturas chamadas cromossomos.
Mais adiante, vamos falar mais sobre os cromossomos. Além do DNA presente no núcleo das células, existem, também, pequenas moléculas circulares de DNA localizadas no interior de organelas citoplasmáticas conhecidas como mitocôndrias. Este tipo de DNA recebe o nome de DNA mitocondrial.
Que outros conceitos precisamos relembrar?
Agora que vocês já se recordam o que é DNA, para que ele serve, onde pode ser encontrado e como se apresenta, vamos relembrar mais alguns conceitos que serão importantes para darmos continuidade aos nossos estudos.
Gene
São as partes do cromossoma que, de fato, contêm uma pequena sequência de DNA responsável por definir uma característica no ser vivo. Por isso, dizemos que o gene é uma unidade básica.
Cromossoma
Representam o DNA organizado e, nas células eucarióticas, são encontrados dentro do núcleo. Notem que todo o material genético de uma espécie não fica armazenado em um único cromossomo, mas, sim, em grupos de cromossomos.
Do total de cromossomos de um indivíduo, metade foi herdado da mãe e metade foi herdado do pai. Sendo assim, uma pessoa tem duas versões de cada gene (alelos), os quais estão localizados em cromossomos homólogos.
Cariótipo
Representa o conjunto de cromossomos de uma dada espécie. A morfologia e a quantidade de cromossomos é uma característica específica. Notem que a quantidade de cromossomos não define a complexidade do organismo.
Genoma
É o conjunto de todos os genes de uma espécie. A expressão “sequenciamento de genoma” é equivalente a “sequenciamento de DNA” e significa a determinação da ordem em que as informações genéticas estão dispostas nos genes.
Genótipo
É o conjunto de genes de um indivíduo. Portanto, o genoma da espécie humana é praticamente igual para todos os seres humanos, mas o genótipo é individual.
Fenótipo
É o conjunto de características físicas de um indivíduo formado a partir da interação do genótipo deste indivíduo com o meio onde vive. Em outras palavras, fenótipo é aquilo que a gente vê!
Locus
Locus é o local (espaço físico, lugar) que um dado gene ocupa em um cromossomo.
Alelos
Os alelos são formas alternativas de um mesmo gene e podem produzir fenótipos diferentes.
Polimorfismos genéticos ou regiões polimórficas
As regiões no DNA de um organismo que apresentam as variações individuais. As regiões polimórficas, na espécie humana, correspondem a menos de 1% do DNA. Mais adiante, quando formos tratar do DNA aplicado a investigações de paternidade/maternidade, falaremos mais sobre os tipos de polimorfismos.
Por ora, essa revisão conceitual é suficiente para continuarmos nossos estudos em Genética Forense. Então, avancemos!
Molécula orgânica
Moléculas orgânicas são substâncias químicas que, na sua estrutura, possuem carbonos ligados entre si.
Nucleotídeos
Os nucleotídeos são formados pela associação de três tipos de moléculas: uma base nitrogenada (que pode ser de quatro tipos diferentes: Adenina, Timina, Citosina e Guanina), um grupamento fosfato e uma molécula de açúcar do grupo das pentoses.
Na verdade, todos os seres vivos possuem DNA e/ou RNA, sendo ambas as estruturas relacionadas à manutenção e à transmissão de material genético.
Eucariotos
Eucariotos são seres que possuem células com núcleo definido por membrana.
As características definidas pelos genes podem ser bem gerais (ou seja, podem definir as características próprias de uma determinada espécie), como também podem ser particulares (ou seja, definir as características personalíssimas de cada indivíduo). Ei!!! Atentem-se a isso, pois é justamente por causa dessa capacidade que os genes possuem que os testes de DNA podem ser usados, por exemplo, para identificar a espécie animal do sangue ou do pelo, eventualmente, encontrado em um local de crime, bem como determinar à qual indivíduo tal sangue ou pelo pertence. Deu para notar a diferença?
Os humanos, por exemplo, possuem 46 cromossomos, já os gatos, 38, e os cães, 78. Os cromossomos se apresentam formando pares homólogos. Os pares homólogos apresentam genes para as mesmas características genéticas, sendo um cromossomo do par herdado da mãe e o outro, do pai.
Na maioria das espécies, do total de pares de cromossomos (n), n – 1 são chamados de pares autossômicos, havendo, ainda, um par de cromossomos sexuais. Na espécie humana, que possui 23 pares de cromossomos homólogos, 22 pares são cromossomos autossômicos e um par, cromossomo sexual.
Lembram que dissemos que, no sequenciamento do genoma humano, descobriram que temos, enquanto espécie, 99% de genes iguais, mas que 1% dos nossos genes tem uma variação individual? A diferença entre genoma e genótipo está baseada nessa pequena parcela de DNA que nos diferencia uns dos outros.
Molécula orgânica
O plural de locus é loci.
Alelos
Vejamos o seguinte exemplo: os grupos sanguíneos ABO possuem 3 alelos: A, B e O. Eles podem ser combinados para formar três genótipos homozigotos possíveis (AA, BB e OO) e três genótipos heterozigotos (AO, BO e AB). Percebam, então, que com 3 alelos, podem ser formados 6 genótipos. Contudo, como AA e AO, assim como BB e BO, são fenotipicamente iguais, esses 3 alelos podem formar 4 fenótipos diferentes: A, B, AB e O.
EXAMES DE DNA
Maravilha! Depois de fazermos essa breve revisão, ficará fácil entender a lógica que há por trás do emprego da tecnologia de DNA no campo criminal.
É importante ter em mente que a identidade genética através de exames de DNA tem várias aplicações, que vão além de demonstrar a culpabilidade de criminosos, tais como: absolver inocentes, identificar corpos e restos humanos relacionados a desastres em massa ou a campos de batalha, determinar paternidade, elucidar trocas de bebês em berçários, detectar erros de rotulação de amostras biológicas em laboratórios de patologia, fazer análises de riscos para a saúde, estudar estimativas de etnias, investigar genealogia familiar etc.
Fora isso, não se esqueça que as técnicas de DNA também podem ser aplicadas a estudos envolvendo vegetais e animais, além dos seres humanos.
O DNA aplicado ao combate ao consumo de carne de caça clandestina
Fiquem atentos também ao fato de que a tecnologia de DNA avança a todo instante. Assim, um exame que não podia ser feito no passado ou, até mesmo, nos dias de hoje, poderá ser feito no futuro, haja vista os novos conhecimentos adquiridos no campo da Genética.
Atenção
Sobretudo na área criminal, os peritos não podem desperdiçar nenhum vestígio biológico, assim como devem cuidar para que ele seja devidamente guardado, de modo que, a qualquer momento, possa ser usado em análises laboratoriais. Lembrem-se sempre de que, para a justiça, a confiabilidade da prova material é imprescindível e está diretamente relacionada à integridade do vestígio que a embasa.
Para ilustrar como o DNA pode ser determinante para resolver uma história, vejamos o caso da grã-duquesa russa Anastásia Romanova.
O CASO DA GRÃ-DUQUESA ANASTÁSIA ROMANOVA
A Dinastia Romanov foi uma família da nobreza russa que, por gerações, durante 400 anos, governou o Império Russo. No entanto, em 1917, os Romanov e o Regime Czarista que eles personificavam foram depostos do poder pela Revolução Bolchevique.
Os últimos governantes do Império Russo foram o Czar Nicolau II e a Czarina Alexandra Feodorovna. O casal e seus quatro filhos foram executados no porão da casa onde estavam sendo mantidos presos, em Ecaterimburgo, em julho de 1918. Seus corpos não foram encontrados à época.
Durante anos, na Rússia, circularam rumores de que Anastásia Romanova, uma das filhas do casal, havia conseguido sobreviver ao atentado. Várias mulheres se apresentavam dizendo ser a grã-duquesa sobrevivente, inclusive Anna Anderson, que, durante mais de 60 anos, levou uma vida de luxo se passando como filha do Czar e da Czarina assassinados. Os rumores quanto à sobrevivência de Anastásia Romanova ficaram mais fortes, quando em 1991, em uma vala comum, os corpos do casal e de dois de seus filhos foram encontrados, nas proximidades da casa em que eles viviam.
Em 1994, a fim de verificar a veracidade da história de Anna Anderson, embora esta tivesse morrido dez anos antes e seu corpo fora cremado, a partir de pedaços de roupas e de cabelos da mulher, foram extraídas amostras de seu material genético e realizados exames de DNA. Os resultados dos exames de Anna Anderson foram comparados com o perfil genético de um descendente dos Romanov. As análises foram categóricas e demonstraram que Anna Anderson era uma impostora e não tinha qualquer vínculo com a Dinastia Romanov. Anos mais tarde, em 2008, perto de Ecaterimburgo, foram encontrados os restos mortais de um rapaz e de uma moça. Exames de DNA comprovaram que aqueles corpos eram, de fato, dos dois irmãos Romanov que não haviam sido encontrados com a família.
Em 2009, foram publicados os últimos resultados das análises genéticas referentes aos corpos dos Romanov e restou provado, de forma definitiva, que nenhum dos integrantes da família imperial havia sobrevivido, encerrando-se, assim, um capítulo da história Russa.
Neste caso, a tecnologia do DNA não foi usada para apontar os assassinos, mas, sim, para confirmar a identidade das vítimas e excluir eventuais impostores.
O caso de Anastásia Romanova é um bom exemplo de como a tecnologia do DNA resolveu uma história do passado, que, à época do ocorrido, não poderia ser solucionada desta forma, pois a própria Genética, enquanto ciência, ainda estava engatinhando.
Vejamos agora, de forma breve e resumida, em que consiste os exames de DNA.
A lógica dos exames de DNA
Como já falamos, o DNA carrega nossas informações genéticas, mas, diferente de um retrato falado, que destaca as características físicas de um indivíduo, o perfil genético de uma amostra questionada apresenta uma série de informações que, de forma isolada, não querem dizer muita coisa. Por isso, quando falamos de exames de DNA, é bom lembrarmos que estamos nos referindo a um tipo de exame comparativo, no qual uma amostra questionada referente ao indivíduo que se quer identificar é confrontada com uma ou várias amostras de referência, obtidas de indivíduos conhecidos.
Amostra questionada
Todo e qualquer vestígio coletado em local de crime ou em pessoa vitimada.
Amostras de referência
Amostra biológica coletada exclusivamente para estabelecer o vínculo biológico ou confronto genético com a amostra questionada. Podem ser diretas, quando do próprio indivíduo que se pretende identificar, ou indiretas, quando obtidas de familiares com vínculo biológico para fins de comparação.
Lembram do caso Colin Pitchfork? Naquele caso, as amostras questionadas seriam os sêmens coletados nas vítimas, enquanto as amostras de referência seriam aquelas obtidas das pessoas na campanha de doação de sangue. Para tanto, quando foi colhido sangue da população de Narborough, as amostras foram devidamente rotuladas e identificadas.
Falamos, bastante, também, que a maior parte do genoma humano é idêntica entre os indivíduos. Porém, nas chamadas regiões polimórficas, estão as informações genéticas que são variáveis de indivíduo para indivíduo.
Os exames de DNA para identificação de pessoas se dedicam, justamente, a analisar os polimorfismos genéticos, ou seja, aquilo que varia de um indivíduo para outro. De preferência, são escolhidas as regiões que sabidamente:
Possuem maior concentração de variabilidade genética, isto é, um alto nível de polimorfismo. |
São estáveis em diferentes ambientes, o que torna o DNA, neste local, menos sujeito a degradações químicas e estruturais. |
Apresentam informações capazes de distinguir progenitores. |
São reproduzidas com precisão na progênie. |
Devem apresentar uma configuração padrão de maneira que os resultados possam ser reproduzidos e comparados em diversos laboratórios. |
Em conjunto, essas regiões são os chamados marcadores genéticos.
Adiante, quando formos tratar da aplicação do DNA para fins de investigação de paternidade ou para identificação de vítimas de acidentes em massa, vamos falar mais sobre o vínculo genético familiar e a importância do DNA mitocondrial.
Etapas dos exames de DNA
Desde o início da aplicação da Genética para a identificação de pessoas até a atualidade, os sistemas de tipagem genético vêm evoluindo consideravelmente. Nos dias de hoje, os marcadores genéticos permitem discriminar geneticamente um indivíduo em um pool gênico de um trilhão de pessoas.
A capacidade resolutiva das análises genéticas tende a aumentar, pois novas metodologias de exames de DNA estão, constantemente, sendo desenvolvidas, buscando marcadores genéticos cada vez mais eficientes, capazes de tornar os resultados das análises altamente confiáveis, mesmo quando essas são geradas a partir de amostras escassas e severamente degradadas, que é, por via de regra, o caso das amostras colhidas em locais de crime.
Vamos ver, superficialmente, quais são as etapas dos exames de DNA forense.
É importante ressaltar que alguns elementos podem afetar a qualidade e, portanto, a confiabilidade dos exames de DNA. Vejamos alguns deles:
Contaminação da amostra
Várias pessoas entram em contato com o material biológico no local do crime e durante o todo o seu processamento. Por isso, é indispensável: o uso de EPIs apropriados, a preservação do local do crime e a adoção de quaisquer outros cuidados para evitar contaminações cruzadas.
Inibição
A reação de PCR está sujeita a vários tipos de agentes inibidores, como hemoglobina, melanina, ácido húmico do solo e corantes índigo, afora outras substâncias que, eventualmente, podem estar presentes na composição do suporte do vestígio, como corantes e pigmentos. A coleta de amostras controle pode ajudar a identificar o fator inibidor presente na amostra.
Degradação
Embora a molécula de DNA seja bastante resistente, certas condições, como calor ou temperatura excessivos ou incidência direta de luz solar, assim como algumas substâncias, como fenóis e polissacarídeos, podem levar à degradação.
Contaminações cruzadas
As contaminações cruzadas ocorrem quando as amostras são contaminadas por material que não tem relação com o crime. Nestes casos, usam-se amostras de exclusão para determinar a contaminação cruzada. Amostras de exclusão são, portanto, amostras de pessoas sem relação com o crime, mas cujo DNA é esperado na cena, como moradores de uma casa, funcionários e colaboradores de um escritório ou clientes de um bar, por exemplo. Em caso de crimes sexuais, são as amostras de parceiros consensuais da vítima. As amostras de exclusão são de vital importância, especialmente, quando são obtidos perfis de misturas de DNA de duas ou mais pessoas. Às vezes, pode ser necessário coleta de amostras de exclusão dos dos policiais, peritos e cientistas que tiveram contato com o material genético.
Amostras controle
Amostra controle ou amostra padrão: são amostras do suporte (terra, tecido, parede), coletadas em uma região onde não é observado o material biológico referente à amostra questionada coletada no mesmo lugar. Servem para fins de comparação e identificação de eventuais contaminantes ou inibidores do processamento do DNA.
Estamos falando muito em exames de DNA para identificação de pessoas, mas não se esqueça que as análises de DNA de animais e vegetais também podem ajudar na solução de crimes. Tais análises seguem as mesmas etapas metodológicas e requerem os mesmos cuidados, conforme falamos há pouco. Vejamos um bom exemplo de como o DNA de um animal pode ser importante para descobrir um assassino.
O CASO DO GATO DO VIZINHO
Em 2012, em Hampshire, na Inglaterra, o tronco e as pernas de um homem, identificado como David Guy, foram encontrados acondicionados em sacos de lixo. As demais partes do corpo da vítima, como a cabeça, os braços e a genitália, nunca foram localizadas. No tronco de Guy, a polícia encontrou fibras sintéticas e pelos. Testemunhas disseram que, na época do provável assassinato de David Guy, um vizinho da vítima, chamado David Harper, foi visto passeando de bicicleta, transportando uma caixa nos locais onde os restos mortais de Guy foram achados.
No apartamento de David Harper, os investigadores coletaram, entre outros vestígios, amostras de uma cortina. A partir dessa amostra, foi constatada que as fibras do tecido da cortina eram semelhantes àquelas encontradas no corpo de Guy. Além disso, foi identificada a presença de sangue da vítima na cortina da casa de Harper. David Harper possuía um gato de estimação. Ao compararem o pelo do gato de Harper com aqueles encontrados no tronco de Guy, as policiais verificaram que eles eram geneticamente compatíveis.
A confirmação de que os pelos encontrados no corpo da vítima poderiam ser do gato de Harper aconteceu após a análise do DNA de 493 outros gatos, oriundos de um banco de dados americano, haja vista que, na Inglaterra, não havia informações neste sentido. De acordo com as análises propiciadas pelo banco de dados americano, a variação encontrada no perfil genético do gato de David Harper seria muito incomum, não havendo nenhum outro gato com perfil genético semelhante.
Como o resultado do exame do gato possuía alto grau de incerteza quanto à identificação inequívoca do animal, a polícia procurou o cientista Jon Wetton, que já havia criado um banco de dados de DNA de cães na Inglaterra, para se certificar sobre a robustez da prova pericial. O cientista lhes esclareceu que seria necessário comparar o DNA da amostra questionada com amostras coletadas em gatos da Inglaterra.
Por conta disso, 152 gatos ingleses tiveram seu material genético sequenciado. Apenas três das amostras de referência foram compatíveis com o gato de David Harper. Isto, segundo os cientistas, mostrou que a variação genética observada no gato de Harper também era rara na Inglaterra, indicando, ainda que, com alto grau de incerteza, que os pelos encontrados na cena do crime poderiam ser do gato de Harper.
O caso em questão mostrou que, mesmo de forma não conclusiva, o resultado das análises de DNA do animal se somaram ao conjunto probatório e foi importante na elucidação do assassinato. Além disso, uma vez que, na Inglaterra, a população de gatos de estimação é muito alta, havendo gatos em cerca de um quarto dos lares ingleses, estudos do genoma felino podem ajudar muitas investigações forenses, sendo recomendada a construção de um banco de dados de material genético de gatos.
BANCO DE DADOS DE PERFIS GENÉTICOS PARA FINS DE IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL
Estudaremos, a partir de agora, sobre banco de dados de perfis genéticos. Adianta-se que a manutenção de bancos de dados desta natureza é uma ferramenta poderosa para identificar, sobretudo, de maneira mais rápida, indivíduos suspeitos de cometerem crimes.
No entanto, os exames de DNA e, principalmente, os bancos de dados de perfil genético trouxeram, a reboque, discussões jurídicas e filosóficas, que vão além do campo científico.
Daremos início explicando o que são os bancos de dados de perfil genético. Em seguida, através da apresentação de alguns casos, pretendemos provocar algumas reflexões sobre a intimidade genética, a produção de prova contra si mesmo e o caráter discriminatório dos bancos de dados de DNA. Além disso, vamos mostrar que a lei penal, no Brasil e no mundo, ainda não é capaz de acompanhar a evolução da ciência enquanto ferramenta forense, precisando ser constantemente atualizada para combater a criminalidade.
Então, mãos à obra, vamos começar a trabalhar!
O que é um banco de dados de perfis genéticos?
O conceito de banco de dados de perfis genéticos é bastante simples. Um banco de dados significa o lugar onde, digitalmente, são armazenadas informações genéticas. Há diversos tipos de banco de dados, como aqueles de cães e gatos que falamos anteriormente, como também de pessoas.
No caso dos seres humanos, há bancos de dados de perfis genéticos que são construídos para finalidades específicas, como os criminais, os de pesquisas de etnias e genealógicas etc. Há também banco de dados para cromossomos autossômicos, cromossomo-X, cromossomo-Y e DNA mitocondrial.
Por certo, haja vista que o nosso foco é a Genética Forense, vamos tratar aqui dos bancos de dados de perfis genéticos usados para fins criminais. Mas atentem-se que, cada vez mais, os demais bancos de dados têm sido usados na elucidação de crimes.
Banco de dados de perfis genéticos criminais
A Inglaterra e os Estados Unidos foram pioneiros em armazenar dados em bancos de perfis genéticos forenses.
Inglaterra
Na Inglaterra, isso começou em 1994, com a edição de uma lei (Criminal Justice and Public Order Act) que determinou que a coleta de células da mucosa bucal de um indivíduo não é um ato invasivo e que deve ser realizada em caso de investigações criminais. No ano seguinte, o banco de dados de perfis genéticos inglês (National DNA Database) foi estabelecido. Atualmente, o banco do Reino Unido é considerado o mais eficiente do mundo, armazenando o perfil genético de mais de 5 milhões de indivíduos suspeitos de cometerem crimes.
Estados Unidos
Nos Estados Unidos, a lei (DNA Identification Act), também de 1994, originou, em 1998, a versão americana do banco de dados de DNA (National DNA Index System ou NDIS). O NDSI armazena mais de 13,5 milhões de perfis genéticos de condenados, cerca de 895 mil perfis de vestígios de local de crime. As informações auxiliaram mais de 428 mil investigações criminais nos Estados Unidos.
Saiba mais
Atualmente, o maior banco de dados de perfis genéticos do mundo é o da China, com mais de 50 milhões de perfis inseridos.
Os americanos colaboraram para que, no Brasil, em 2004, fosse iniciada a construção do nosso Banco Nacional de Perfis Genéticos, o qual foi instituído, em 2012, pela Lei 12.654/2012 (BRASIL, 2012). O Banco Nacional de Perfis Genéticos brasileiro possui cerca de 6.500 perfis genéticos de condenados, 440 de investigados e 7.800 de vestígios de local de crime. No Brasil, até o momento, 559 investigações foram auxiliadas por essa ferramenta.
Notem que, através da INTERPOL, a perícia criminal dos diversos países tem acesso aos bancos genéticos internacionais uns dos outros.
Como funciona um banco de dados de perfis genéticos?
Na ocorrência de um crime, os peritos devem coletar vestígios no local.
Caso haja material genético capaz de permitir o sequenciamento do DNA na amostra coletada, o perfil genético questionado é comparado com outros armazenados em banco de dados de perfis genéticos.
Quando é encontrada uma coincidência entre o perfil genético questionado e um perfil armazenado no banco de dados, obtém-se a identidade do possessor da amostra de referência para que novas análises possam ser feitas de forma direta, de modo a comprovar as análises.
O caso de Rachel Genofre demonstra claramente a importância do Banco Nacional de Perfis Genéticos. Se não fosse essa ferramenta, como a polícia não suspeitava do verdadeiro culpado, jamais esse crime bárbaro seria revelado. Entendam a história.
O CASO DE RACHEL GENOFRE
Em 2008, uma menina de apenas 9 anos, chamada Rachel Genofre, desapareceu, logo depois que saiu da escola onde estudava em Curitiba, capital do Paraná. Dois dias após o sumiço da garota, dentro de uma mala abandonada na rodoviária de Curitiba, seu o corpo foi encontrado. O exame de corpo de delito revelou que Rachel foi estrangulada e foi vítima de violência sexual.
No dia em que a mala foi encontrada, as câmeras do sistema de vigilância da rodoviária não estavam funcionando. Para piorar, durante as investigações, a polícia não encontrou nenhuma testemunha do crime ou qualquer pista que pudesse ajudar a explicar o que havia acontecido com a menina. As únicas evidências que os investigadores conseguiram foram amostras de material biológico colhidas na mala e no corpo da própria vítima, inclusive em suas partes genitais.
Durante 11 anos, a polícia continuou investigando o caso. O material biológico obtido na cena do crime foi comparado com o DNA de mais de 200 suspeitos, mas, em nenhuma das análises, o resultado do confronto deu positivo. A família seguia desesperada para pôr fim na história e entender o que havia acontecido com Rachel.
Em setembro de 2019, 11 anos depois do assassinato de Rachel, finalmente, o criminoso foi identificado. Isso aconteceu por meio da comparação das amostras questionadas colhidas do corpo da menina e com o perfil genético de um homem cadastrado no Banco Nacional de Perfis Genéticos.
O assassino e estuprador da menininha de apenas 9 anos, Carlos Eduardo dos Santos, já estava preso, condenado por outros crimes. Diante da prova contundente de que ele era o responsável pela violência que tirou a vida da garota, o criminoso confessou e contou à polícia que havia atraído Rachel para o seu escritório com a finalidade de estuprá-la, mas, como a menina não parava de gritar, acabou por matá-la também.
Casos para reflexão
Agora, veremos quatro casos que, de um lado, mostram a eficiência das análises de DNA na solução de crimes e, de outro, evidenciam como a nossa sociedade, de modo geral, precisa se preparar legal e moralmente para se posicionar frente ao afã de combater o crime e a preservação de direitos individuais.
O caso do assassinato não condenável
Em 1987, uma moça de 22 anos, chamada Nelly Haderer, foi assassinada com dois tiros. Seu corpo foi encontrado esquartejado em um depósito de lixo em Nancy, na França. De acordo com as investigações, o principal suspeito do crime era Jacques Maire. Sem provas materiais contundentes, depois de três julgamentos, em 2008, finalmente, Maire foi absolvido em última instância pela justiça francesa.
Em 2014, 27 anos depois do crime, atendendo a pedidos da família, novas perícias foram ordenadas pela justiça. Nesta nova oportunidade, uma mancha de sangue encontrada na parte interna do bolso da calça da vítima foi submetida à tecnologia do DNA. Ao final dos exames, a polícia constatou que o sangue pertencia a Jacques Maire. Caso esta prova tivesse sido levada a julgamento, no contexto do conjunto probatório que a acusação possuía, à época, teria sido determinante para condenar Maire pelo assassinato da moça.
A questão, neste caso, é que a lei francesa proíbe categoricamente que uma pessoa absolvida em última instância seja acusada pelo mesmo crime, ainda que diante de provas novas. Neste caso, embora a família e a justiça saibam que Jacques Maire assassinou Nelly Haderer, ele não será condenado pelo crime e permanecerá impune.
O caso da curiosidade genealógica
Em 2004, uma mulher de 56 anos e um menino de 8 anos foram esfaqueados e mortos na cidade de Linköping, na Suécia. Durante os últimos 16 anos, a polícia não conhecia a identidade do suspeito, apenas seu perfil genético, obtido a partir de vestígios coletados na cena do crime, como um boné que continha uma mancha de sangue, que não pertencia às vítimas assassinadas. Ocorre que, na Suécia, desde janeiro de 2019, é legalmente permitido que a perícia consulte sites que trabalhem com exames de DNA para fins familiares, e utilize as informações ali contidas em investigações criminais.
No caso em questão, o DNA de Daniel Nyqvist foi encontrado em um site de Genealogia online, utilizado pelo próprio Daniel em suas pesquisas pessoais para saber sobre sua antecedência familiar. Ao consultar tal site em 2020, a polícia verificou que o DNA de Daniel Nyqvist era coincidente com aquele extraído do vestígio material coletado no local de crime. Assim, após novos testes de DNA terem confirmado, seguramente, a correspondência entre o perfil genético de Daniel Nyqvist e o da amostra questionada, o suspeito confessou o crime e foi, finalmente, condenado.
O caso de Mandy Stavik
Em 1989, Mandy Stavik, uma moça de 18 anos, saiu de casa para dar uma corrida na cidade de Acme, em Washington, e desapareceu. Três dias depois, seu corpo foi encontrado no rio a 10 km de casa. Os legistas disseram que Mandy foi afogada e estuprada. A polícia não tinha nenhuma pista do assassino; não havia sinais de luta no local onde o corpo de Mandy foi encontrado.
Na cena do crime, foram coletadas amostras de material biológico. Naquela época, a tecnologia do DNA estava começando a se desenvolver e o FBI (Federal Bureau of Investigation) já a aplicava em algumas investigações. Sabendo disso, a polícia enviou as amostras coletadas na cena do crime de Mandy Stavik para o FBI. Os exames revelaram dois perfis genéticos: o da vítima e o de um homem não identificado.
Em 2009, 20 anos depois do crime, ainda sem informações sobre o caso, a polícia teve a ideia de coletar amostras de DNA de homens que, à época do fato, residiam em Acme. Durante 4 anos, foram colhidos e analisados diversos materiais genéticos de homens que se enquadravam no perfil das investigações, entretanto, nenhum deles possuía DNA coincidente com o da amostra questionada. Passados 27 anos, já em 2013, o nome de Timothy Bass chamou a atenção dos investigadores, pois o sujeito, na época do assassinato, morava na mesma rua que Mandy. A polícia descobriu que, logo depois do crime, Timothy Bass mudou da cidade e, em janeiro de 1990, se casou com Gina Malone, com quem teve três filhos. Ao ser procurado pela polícia, Timothy disse que não se lembrava de Mandy Stavik e se recusou a fornecer seu DNA para os exames. Para a polícia, aquilo soou muito estranho e Bass passou a ser o suspeito número um do caso.
A polícia, então, procurou uma moça chamada Kim Wagner, que trabalhava com Timothy Bass desde a época do crime. Kim ficou intrigada, pois os policiais, sem lhe dar muitas explicações, lhe pediram que contasse sobre a rotina de trabalho de Timothy e se ela poderia coletar alguma coisa que o colega tivesse recém-tocado, como uma ponta de cigarro, por exemplo. Assustada e sem saber se deveria ou não colaborar, Kim Wagner pediu aos policiais que procurassem o departamento pessoal da empresa. O departamento pessoal, por sua vez, disse que só poderia colaborar se a polícia lhes apresentasse uma intimação ou um mandado de busca e apreensão. Como os policiais não tinham provas contundentes sobre Timothy, não possuíam as devidas determinações judiciais.
Anos depois, em uma conversa de bar com os amigos, Kim Wagner soube que Timothy Bass, na época do crime, era vizinho de Mandy Stavik. Impressionada com aquilo, Kim procurou a polícia e se ofereceu para ajudar. Kim, então, passou a vigiar Timothy Bass de perto e notou que o homem, além de usar, constantemente, luvas, era bastante cauteloso com seu lixo, não deixando nada que tivesse seu material biológico para trás.
Um dia, no entanto, após beber água, Bass jogou o copo no lixo. Kim, imediatamente, entregou o copo à polícia. Ao realizarem o exame de DNA extraído do copo, a polícia descobriu que o perfil genético de Timothy Bass era exatamente igual ao da amostra questionada, coletada em 1989, na cena do crime. Timothy Bass foi, então, levado a julgamento. Para justificar o encontro do seu material biológico no corpo de Mandy, Bass afirmou que mantinha relações sexuais às escondidas com a vítima, negando, veementemente, que teria cometido o crime.
Duas testemunhas foram decisivas para o julgamento de Timothy: sua esposa e seu irmão mais novo, Tom Bass. Isso porque foi apurado que Bass havia pedido à esposa para mentir em juízo, dizendo que estava com ele no dia da morte de Mandy Stavik. Além disso, foi revelado que Timothy, logo depois que a polícia o procurou, em 2013, foi atrás de seu irmão e lhe pediu para dizer que ele, Tom, também mantinha relações sexuais com Mandy e que também não iria fornecer seu DNA às investigações. Em 2019, o júri declarou Timothy Bass culpado do assassinato de Mandy Stavik. Apesar da robustez das provas apresentadas no julgamento, Bass continua alegando ser inocente.
Um caso e muitas verdades escondidas
Em 1996, uma moça de 18 anos, Angie Dodge, foi estuprada e assassinada em Idaho Falls, nos Estados Unidos. No local do crime, foram coletados sêmen e cabelos. Posteriormente, os exames de DNA indicaram que ambos os vestígios biológicos pertenciam a um mesmo homem, cuja identidade não pôde ser identificada. A polícia deu início às investigações do caso e, dois anos depois, em 1998, Christopher Tapp foi condenado e preso pelo estupro e assassinato da garota.
O rapaz, cujo material genético não batia com aquele encontrado na cena do crime, dizia ser inocente e que sua confissão havia sido obtida mediante coação policial. A polícia negou ter cometido qualquer tipo de coação e justificou o não encontro do DNA de Tapp, na cena do crime, sob a alegação de que várias pessoas estariam envolvidas. Embora a polícia tivesse dito que outras pessoas teriam participação na morte de Dodge, ninguém mais foi ouvido ou preso.
Christopher Tapp, por sua vez, mesmo depois de preso há 20 anos, alegava ser inocente e insistia em dizer que confessou sob coação. Em 2001, uma organização chamada Innocence Project, que atua ajudando na absolvição de pessoas inocentes condenadas injustamente, se interessou pela história de Tapp. Em 2017, foi provado que Christopher Tapp não teve nenhum envolvimento com o estupro de Angie Dodge. Então, como ele já havia cumprido a pena pelo assassinato da garota, foi libertado, mas a pecha de assassino o acompanhava.
Intrigada com a alegação de inocência de Christopher Tapp e pelo fato de nenhum outro suspeito do crime ter sido preso, a mãe de Angie Dodge pediu ajuda a CeCe Moore, a geneticista chefe da empresa Parabon NanoLabs. Parabon NanoLabs é uma organização que, entre outras atividades, desenvolve ferramentas forenses na área de DNA.
Em 2018, em um site público de genealogia genética, CeCe Moore encontrou um perfil genético que se aproximava daquele encontrado na amostra questionada, obtida a partir dos vestígios biológicos coletados na cena do crime, em 1996. De posse dessa informação, Cece concluiu que o assassino de Angie Dodge poderia ser um descendente da pessoa cujo DNA foi encontrado no site. Cece descobriu, então, que havia seis homens que se enquadravam nesse perfil.
Em janeiro de 2019, CeCe Moore passou essas informações para a polícia, que descobriu que um dos homens vivia em Idaho. Os policiais, então, resolveram começar por ele. A fim de conseguir material genético desse homem, de forma velada, os investigadores passaram a segui-lo. No mês seguinte, a polícia conseguiu coletar um chiclete que o suspeito descartou, submetendo esta amostra aos exames de DNA. O perfil genético do suspeito, chamado Brian Dripps, coincidia exatamente com o da amostra questionada. A fim de confirmar as suspeitas, a polícia continuou seguindo Dripps e, em maio daquele ano, coletou uma ponta de cigarro que ele jogou pela janela do carro. Mais uma vez, o DNA de Brian Dripps coincidiu com o da amostra questionada.
Diante da prova material, Brian Dripps confessou o crime e foi condenado e preso, mas CeCe Moore não parou suas investigações por aí, pois, ao descobrir que Brian Dripps não conhecia nenhuma das outras pessoas relacionadas à árvore genealógica que permitiu que ele fosse encontrado, suspeitou que ele fosse um descendente perdido daquela família. Moore descobriu que um dos homens da família, há muito tempo, havia se casado e, em seguida, se divorciado, sem, aparentemente, ter filhos dessa relação. No entanto, ao ir atrás de sua ex-mulher, CeCe Moore descobriu que Brian Dripps era filho do tal homem, que nunca soube de sua existência. A mulher havia se casado com outro homem, que deu a Brian seu sobrenome Dripps.
Como vocês podem notar pela leitura dos casos, ainda há muito que fazer em termos de lei e, mais ainda, em termos de consciência. Levando luz à reflexão de vocês, vejam o que diz a Lei 12.004/2009 (BRASIL, 2009) sobre a aplicação do DNA às investigações de paternidade. Será que o mesmo não poderia ser aplicado às investigações criminais?
Art. 2º-A. Na ação de investigação de paternidade, todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, serão hábeis para provar a verdade dos fatos. Parágrafo único. A recusa do réu em se submeter ao exame de código genético (DNA) gerará a presunção da paternidade, a ser apreciada em conjunto com o contexto probatório.
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MÓDULO 3
Distinguir a aplicação da Genética nos exames de paternidade/maternidade
GENÉTICA APLICADA NAS INVESTIGAÇÕES DE PATERNIDADE/MATERNIDADE
Agora, estudaremos uma outra área de aplicação da Genética Forense: a determinação de paternidade ou maternidade.
Em linhas gerais, trata-se de um teste de DNA para a verificação de vínculo biológico entre pessoas. Servem como prova legal para determinação de paternidade/maternidade; reinvindicações de herança; fruição de direitos e deveres reciprocamente considerados; comprovação de gravidez decorrente de estupro; interrupção de gravidez decorrente de estupro etc.
Saiba mais
Segundo divulgado pelo Observatório Brasil da Igualdade de Gênero (BRASIL, 2009), 30% das crianças não têm filiação paterna em seus registros. De acordo com Fonseca (2004), em 2002, em média, mil pedidos de investigação paterna foram peticionados, mensalmente, na Justiça Estadual do Rio Grande do Sul, o que representa cerca de 7% do volume de nascimentos mensal naquele estado.
A questão da paternidade/maternidade é tão complexa que a legislação brasileira prevê que resta presumida a paternidade quando o suposto pai se recusa a se submeter ao exame de DNA.
Legislação brasileira
A presunção de paternidade no caso de recusa de realização de exames de DNA está prevista no artigo 1º, da Lei nº 12.004/2009 (BRASIL, 2009).
Vale destacar que, segundo o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ, 2016), “Nem a paternidade socioafetiva e nem a paternidade biológica podem se sobrepor uma à outra. Ambas as paternidades são iguais, não havendo prevalência de nenhuma delas porque fazem parte da condição humana.”
Nesta direção, de acordo com a Lei º 8.560 (BRASIL, 2009), o reconhecimento de filhos tidos fora do casamento é irrevogável, a não ser que seja provado que o registro foi baseado em algum vício do ato.
Por fim, afora a parte técnica das análises genéticas de paternidade/maternidade que trataremos aqui, é bom que vocês saibam que existe todo um arcabouço jurídico que regulamenta a questão, prevendo as circunstâncias, o tipo e a validade dos exames de DNA para confirmação ou alteração de registro de nascimento. Por óbvio, embora crie alguns entraves, a intenção da lei é proteger os envolvidos. No entanto, não iremos examinar esses aspectos, pois, caso contrário, nosso estudo iria debandar para outros rumos
Já conseguimos perceber que, assim como o uso da tecnologia do DNA para a elucidação de crimes, o assunto aqui exige conhecimento científico para garantir a robustez das análises. Então, façamos um esforço e comecemos nossa caminhada. Todos preparados?
VARIABILIDADE HUMANA
Como aprendemos, os exames de DNA têm como objetivo diferenciar um indivíduo de outro. Ocorre que a variabilidade humana, em termos fenotípicos, não é muito diferente, havendo um certo grau de homogeneidade. No entanto, em termos genotípicos, somos muito diversos.
Se pegarmos duas pessoas, ainda que com vínculos biológicos, como pai e filho, por exemplo, veremos que, para cada 500 pares de bases de seus respectivos DNA, um par será diferente. Parece pouco? Só que não! De acordo com o Projeto Genoma Humano, nosso material genético tem mais de 3 bilhões de pares de bases nitrogenadas, o que representa uma variação de 6 milhões de bases entre duas pessoas.
Como falamos antes, atualmente, os marcadores genéticos permitem discriminar geneticamente um indivíduo em um pool gênico de um trilhão de pessoas. Não é à toa que os testes de DNA possuem muito prestígio na área jurídica como meio de prova. Vocês se lembram em que parte do DNA todas essas variações genéticas podem ser encontradas? Isso mesmo, nas regiões polimórficas. Então, vamos estudar mais um pouquinho sobre o polimorfismo genético.
POLIMORFISMO GENÉTICO: O SEGREDO DA VARIAÇÃO HUMANA
Para que vocês consigam entender o que é um polimorfismo genético, prestem atenção na explicação didática que se segue.
O DNA humano possui 3 bilhões de pares de bases nitrogenadas. Estas bases se juntam em grupos, uns maiores, outros menores, e formam 30.000 genes. Cada um desses 30.000 genes ocupa um espaço físico no DNA humano, espaço este que chamamos de locus. Ao realizar um exame de DNA, por conta de muita pesquisa feita anteriormente pelos cientistas que mexem com isso, o geneticista já sabe quais loci são interessantes para as suas análises, que são exatamente aqueles que, evolutivamente, apresentam variações individuais. Assim, em um laboratório forense, o perito examina diretamente os loci que lhe interessam, não perdendo seu tempo, no esforço hercúleo de examinar todos os 30.000 loci do DNA humano. A imagem a seguir explica essa questão.
A maior parte dessas bases está nos cromossomos autossômicos, mas também há material genético nos cromossomos sexuais e no DNA mitocondrial.
Na imagem ao lado, cada traço horizontal corresponde a um locus gênico, ou seja, a um lugar físico, no DNA, que é ocupado por um gene. Pela imagem, dá para ver que, nesta sequência de DNA, há vários genes, mas não todos os genes de uma pessoa, já que o ser humano possui cerca de 30.000 genes. Cada gene é formado por sequências de bases nitrogenadas. A depender do gene, essa sequência tem um padrão de posicionamento ou de repetição. A ilustração logo abaixo representa um trecho hipotético da sequência de DNA acima, da qual foram retirados 10 genes para serem examinados e, dessa forma, verificar quais deles são iguais em todas as pessoas e quais deles apresentam variações individuais.
Na imagem, estão representados, hipoteticamente, 10 genes encontrados no sequenciamento do DNA do Indivíduo A. Cada um desses genes é responsável por uma característica. Abaixo, são apresentadas as supostas características que cada um dos genes acima comanda.
• Gene 1: Comprimento de dedos dos pés
• Gene 2: Ter duas pernas
• Gene 3: Ter duas orelhas
• Gene 4: Piscar o olho
• Gene 5: Frequência de piscadas do olho por minuto
• Gene 6: Ter dois olhos
• Gene 7: Coloração dos olhos
• Gene 8: Ter dentes
• Gene 9: Ter língua
• Gene 10: Cor dos dentes.
No esquema hipotético, para fins de identificação de pessoas, os genes 2, 3, 4, 6, 8 e 9 não têm valor, pois são comuns a todas as pessoas, com exceção daquelas que têm alguma variação atípica (mutação pontual), que, pela raridade na população, não serve para fins de comparação.
Os genes 1, 5, 7 e 10 comandam as mesmas características nos seres humanos, mas em cada ser humano esses genes se expressam de maneira diferente, produzindo fenótipos diferentes, isto é, produzindo características físicas diferentes. Em linhas gerais, a identificação de pessoas pela análise de DNA é baseada na análise estatística do conjunto dessas diferenças. Assim, como temos muitos e muitos genes, essa combinação de diferenças permite individualizar uma pessoa no meio da população.
Dando continuidade à explicação, vamos juntos... A maior parte do DNA humano apresenta a mesma sequência de bases nitrogenadas entre a população. Voltando ao nosso esquema hipotético referente ao DNA do Indivíduo A, seria esperado encontrar este tipo de homogeneidade genética nos genes 2, 3, 4, 6, 8 e 9. No entanto, com relação aos genes 1, 5, 7 e 10, as pessoas possuem tipos de sequências de bases nitrogenadas peculiares, o que ocasiona fenótipos diferentes. O quadro abaixo exemplifica como isso funciona.
Indivíduo A |
Indivíduo B |
Indivíduo C |
Indivíduo D |
|
---|---|---|---|---|
GENE 1
|
Dedão maior do que 2º dedo |
Dedão maior do que 2º dedo |
Dedão menor do que 2º dedo |
Dedão igual ao 2º dedo |
GENE 5
|
17 vezes/min |
15 vezes/min |
17 vezes/min |
20 vezes/min |
GENE 7
|
Castanho claro |
Castanho escuro |
Verde |
Castanho claro |
GENE 10
|
Acinzentado |
Acinzentado |
Amarelo avermelhado |
Marrom avermelhado |
Por conta dessas variações, ao analisar a sequência do DNA de um indivíduo, quanto mais loci são examinados e comparados, menor a probabilidade que dois indivíduos compartilhem o mesmo genótipo.
Em contrapartida, a cada locus cuja informação seja correspondente quando duas amostras são comparadas, maior a probabilidade dos dois perfis de DNA correspondentes serem oriundos de uma mesma fonte, isto é, de um mesmo indivíduo.
Uma vez que, com efeito, os testes de DNA são exames comparativos, guarde essas duas possibilidades aqui mencionadas, pois voltaremos a falar sobre isso quando estivermos tratando de testes de paternidade.
Agora, ficou claro por que a variação genética é suficiente para garantir que cada ser humano seja diferente um do outro? Vejamos, então, como se dão, nos locus, as variações genéticas nas regiões polimórficas.
Regiões polimórficas ou polimorfismo genético: formato
Pela análise do termo regiões polimórficas, podemos inferir que estamos diante de “um lugar que apresenta múltiplas formas”. No tocante a essas variações de forma, basicamente, os polimorfismos genéticos podem ser de dois tipos: polimorfismos de sequência e polimorfismos de comprimento:
Polimorfismo de sequência
São nucleotídeos que aparecem em um sequenciamento diferenciado, ocasionado, de modo geral, por mutações pontuais. Ocorre que as mutações em si não afetam a composição alélica da população, isso porque as taxas de mutações espontâneas são muito reduzidas. Por conta disso, este tipo de polimorfismo tem pouca aplicação para a identificação de pessoas, a não ser que a mutação em questão seja estável e transmitida às gerações seguintes.
Polimorfismo de comprimento
São sequências de nucleotídeos que se repetem em múltiplas cópias, variando o número de repetições entre os indivíduos para cada locus.
Uma vez que o polimorfismo de comprimento é o tipo de variação de material genético mais comum, usualmente, ele se aplica à identificação de pessoas, que podem ser discriminadas, conforme o comprimento das sequencias repetidas. O padrão de repetições é característico e herdado por indivíduos geneticamente relacionados. Existem duas variantes de polimorfismo de comprimento: os minissatélites e os microssatélites.
Mutações
Mutação é toda e qualquer alteração na sequência de bases do DNA. Para ser considerado um polimorfismo e, como tal, ter valor discriminatório no genótipo de um indivíduo, o alelo raro em um determinado locus deve estar presente em mais de 1% dos indivíduos da população. Isto porque, com essa frequência, pressupõe-se que seja uma variação estável e, portanto, será transmitida às gerações seguintes.
Polimorfismo de comprimento |
|
---|---|
Tipos de genes |
|
De sequências curtas repetidas em
tandem |
De repetição em tandem de número variável (Variable Number of Tandem Repeats – VNTR) ou minissatélites |
Unidade básica das repetições |
|
2 a 6 pares de bases |
9 a 100 pares de bases |
É a metodologia eleita para a tipagem de DNA de vestígios biológicos em geral, pois a técnica pode ser aplicada em quantidades diminutas de DNA, inclusive com alto grau de degradação. |
Atualmente, não é muito utilizado, pois a técnica exige DNA íntegro e em grande quantidade. |
Diante de tudo que falamos até aqui sobre polimorfismo genético, importa saber que, considerando a variação em um determinado locus e o tipo de variação ali encontrado, as pessoas podem ser individualizadas, geneticamente, com base no seu padrão de polimorfismo.
Atenção
Considerando que as situações mais comuns na atividade da Genética Forense são o teste de identidade, onde uma mancha ou uma evidência biológica deve ser comparada a um perfil suspeito; e o teste de parentesco, onde questões de relacionamento entre indivíduos são examinadas; a análise das repetições em múltiplas cópias das sequências de nucleotídeos é suficiente para alcançar resultados seguros e determinantes. No entanto, como veremos no próximo módulo, quando formos tratar da identificação de pessoas relacionadas a incidentes com múltiplas vítimas fatais, veremos que, de maneira a complementar as análises dos microssatélites, uma outra classe de polimorfismo, chamado polimorfismo de nucleotídeo único, tem sido aplicada.
Vimos, então, o formato dos polimorfismos, agora, veremos, onde estão, no material genético de um indivíduo, as regiões polimórficas e que tipo de informações tais regiões são capazes de fornecer às análises forenses.
Regiões polimórficas ou polimorfismo genético: localização
No genoma, os polimorfismos podem ser encontrados nos:
Cromossomos
autossômicos
Cromossomos sexuais
(X e Y)
DNA
mitocondrial
Cada tipo possui seu próprio modelo de herança e conta com uma história evolucionária diferente.
Novamente, vamos revisitar assuntos já tratados para que vocês possam avançar nos estudos confiantes.
Dentro das células humanas, o DNA pode ser encontrado no núcleo celular (DNA nuclear) e nas mitocôndrias (DNA mitocondrial). Em separado, vejamos cada um deles.
Na imagem, os cromossomos (autossômicos e sexuais) são visíveis no interior do núcleo da célula.
Na imagem, o DNA mitocondrial é representado pelos filamentos retorcidos observados no interior da organela.
DNA nuclear
Considerando as 3 bilhões de bases nitrogenadas que compõem o genoma humano, se tivéssemos uma única molécula de DNA, ela teria que ser muito comprida e estaria sujeita a se romper com facilidade.
Assim, evolutivamente, o material genético dos organismos eucariotos é dividido e organizado nos cromossomos. Na espécie humana, nosso DNA está dividido em 46 cromossomos.
Isso não é novidade para vocês, não é mesmo? Assim como não é novidade que nossos cromossomos foram herdados de nossos pais, e que os dos nossos pais foram herdados de nossos avós e, por aí, vamos refazendo o caminho da nossa ancestralidade.
A herança genética, diferente das heranças patrimoniais, é certa e imparcial, não havendo briga nem desavença na transmissão do “patrimônio genético” dos pais para os filhos.
O pai fornece 23 cromossomos e, do mesmo modo, a mãe fornece, numericamente, os mesmos 23 cromossomos.
Quem entrega os cromossomos para o herdeiro são os gametas sexuais masculino e feminino.
Quando os gametas se encontram e se unem, forma-se o zigoto, que é o início da formação do novo indivíduo e que, desde sua criação, passa a ter 46 cromossomos típicos da espécie humana, organizando o material genético desse novo ser no núcleo de suas células.
Além da organização estrutural do DNA nos cromossomos, eles também têm um arranjo especial, no qual um cromossomo, que foi herdado do pai, mantém com outro cromossomo, que é herdado da mãe, uma relação de correspondência funcional.
Em linhas gerais, podemos dividir os 23 pares de cromossomos homólogos em dois grupos: um conjunto maior, no qual estão reunidos os 22 cromossomos autossômicos relacionados às características comuns aos dois sexos biológicos da espécie humana; e um conjunto bem pequeno, que se restringe a um par de cromossomos sexuais, que formam o par XX nas fêmeas e XY nos machos. Em termos funcionais, os cromossomos sexuais são os responsáveis pelas características próprias de cada sexo, que incluem, além dos órgãos reprodutores, genes relacionados ao dimorfismo sexual.
Vejamos primeiro os cromossomos autossômicos e, em seguida, os cromossomos sexuais.
Os cromossomos autossômicos, que são biparentais, armazenam o maior volume de informações genéticas do genótipo de uma pessoa. Dada a riqueza e a variedade do material genético presente nesses cromossomos, os testes de DNA se concentram em analisar marcadores genéticos localizados nessas moléculas.
Estes marcadores possuem um alto poder discriminatório e permitem identificações personalíssimas e seguras, por isso são muito utilizados na Genética Forense, tanto na área criminal, quanto para a determinação de paternidade/maternidade.
No que toca aos testes de paternidade baseados nos marcadores genéticos de cromossomos autossômicos, a imagem a seguir apresenta um esquema ilustrativo que mostra a eficiência de análises dessa natureza.
Observando a figura, nota-se, claramente, que os genes do filho foram herdados dos pais. As análises de paternidade são baseadas em exames semelhantes ao ilustrado ao lado. Por certo, a fim de garantir a confiabilidade dos resultados, são analisados mais loci. No entanto, o que se busca, em linhas gerais, é verificar o padrão de correspondência entre os genótipos dos pais e do filho.
Para fins de identificação humana, utiliza-se, com mais frequência, o DNA dos cromossomos autossômicos, justamente devido à sua enorme riqueza e variedade polimórfica e ao fato de as informações genéticas, neles contidas, serem biparentais.
Por outro lado, alguns fatores, como degradações estruturais, contaminações, exposição prolongada ao meio ambiente etc., podem influenciar na qualidade das amostras biológicas, comprometendo a idoneidade de seu material genético. Casos de escassez de material genético nas amostras também podem inviabilizar o sequenciamento do DNA de cromossomos autossômicos. Nestes casos, análises do DNA presente nos cromossomos sexuais e/ou nas mitocôndrias podem ser recomendadas e contribuir para as investigações forenses. Ressalta-se, no entanto, que essas moléculas, como veremos adiante, fornecem informações uniparentais e, por conta disso, sua aplicabilidade se restringe a determinadas situações.
Os cromossomos sexuais X e Y também possuem polimorfismos do tipo microssatélite e podem ser utilizados, adicionalmente, para suplementar a genotipagem tradicional, feita com DNA de cromossomos autossômicos. Entretanto, tendo em vista seu padrão de herança único, são análises bastante restritas, sobretudo as relacionadas ao cromossomo Y.
São validados, até o momento, para fins forenses, cerca de 100 marcadores genéticos para o cromossomo X e 20, para o cromossomo Y.
O valor do poder de discriminação dos marcadores dos cromossomos sexuais varia de acordo com o gênero e o tipo de pesquisa. A imagem justifica tal questão.
Reparem na cor dos cromossomos X e Y nos pais e como eles são transmitidos para os filhos. A análise do material genético presente em tais cromossomos, pelo seu padrão de herança único, pode ser particularmente útil para avaliações de relacionamentos entre indivíduos (grau de parentesco biológico). No entanto, essas análises são uniparentais, como veremos adiante.
Assim, exames que utilizam marcadores do cromossomo Y, presentes apenas nas células de organismos masculinos, podem ser bastante úteis, particularmente, nos casos de violência sexual, mistura de material genético masculino e feminino e em investigações de paternidade. Podem ser utilizados ainda na identificação da linhagem paterna do doador da amostra, permitindo a investigação familiar do suspeito.
Diferentemente do cromossomo Y, que é exclusivo do sexo masculino, o cromossomo X está presente em ambos os sexos.
Os principais campos de aplicação das análises genéticas com o cromossomo X são testes de paternidade com suposto pai não disponível e outros testes complexos de parentesco. Casos de paternidade padrão (duos e trios), geralmente, podem ser resolvidos apenas com marcadores autossômicos. No entanto, devido ao seu modo específico de herança, existem várias situações em que os marcadores X podem ser mais informativos do que os autossômicos, os do cromossomo Y ou os marcadores mitocondriais. Vejamos esses casos:
Em casos de paternidade que envolvam parentes próximos como supostos pais, como pai e filho, o poder de exclusão dos marcadores autossômicos é substancialmente reduzido e o dos cromossomos X pode ser superior. Isto porque, na hipótese de os supostos pais serem pai e filho, eles não compartilham alelos do cromossomo X idênticos por descendência, logo os marcadores do cromossomo X seriam mais eficientes do que os autossômicos. Já no caso de os supostos pais serem irmãos, eles compartilham em torno de 50% do cromossomo X materno, portanto, a mesma probabilidade de um marcador autossômico.
Em casos de paternidade por deficiência, isto é, quando a amostra biológica de um suposto pai não está disponível e o DNA de parentes paternos do presumido deve ser analisado. Quando duas mulheres têm o mesmo pai, elas compartilham o mesmo cromossomo X paterno. Uma investigação dos marcadores em duas irmãs ou duas meias-irmãs pode, assim, excluir a paternidade, quando for encontrada a presença de quatro alelos ou haplótipos diferentes, mesmo quando nenhum dos pais estiver disponível para os testes. Os marcadores autossômicos não podem fornecer essas informações, sendo essa a principal vantagem da aplicação do cromossomo X.
Atentem-se que marcadores genéticos dos cromossomos Y não individualizam uma pessoa, pois o mesmo conjunto de alelos é encontrado nos irmãos, tios, primos, pai, avô e demais indivíduos que compartilham uma mesma patrilinhagem. Devido a isso, são usualmente empregados em testes de paternidade em que o suposto pai é falecido ou ausente.
DNA mitocondrial
Geneticamente falando, o DNA mitocondrial (DNAmit) é pobre em genes, considerando que contém 16.569 bases nitrogenadas. No entanto, é de interesse para a identificação humana por causa do seu alto grau de polimorfismo. Diferente do DNA cromossomal, o DNA mitocondrial é haploide. O genoma mitocondrial é herdado exclusivamente da mãe.
DNA cromossomal
O DNA cromossomal é diploide, pois são formados pela junção dos gametas haploides. Em se tratando do DNA cromossomal, a exceção a esta regra é com relação ao cromossoma sexual do homem, que por ser YX não é considerado um diploide perfeito.
DNA mitocondrial
O cromossomo Y também é considerado haploide.
DNA nuclear
O DNA nuclear está presente em apenas duas cópias por célula.
DNAmit
Estima-se que existam de 2 a 10 cópias de DNAmit por mitocôndria, e que há entre 200 a 10.000 mitocôndrias por células, dependendo do tipo de tecido.
No campo forense, embora somente com exames realizados com o DNAmit, na maioria dos casos, não se possa incriminar ou absolver pessoas, é possível estabelecer conexões irrefutáveis entre indivíduos(s) e o local do delito. Tal informação, somada a um conjunto probatório robusto, pode ser determinante para os resultados das investigações.
Vocês devem estar se perguntando: “Ué, mas se o poder de discriminação do DNA mitocondrial não é alto, por que usá-lo?”
Resposta
Bem, há algumas situações em que os marcadores polimórficos autossômicos têm poucas chances de fornecer informações às investigações, como é o caso de ossos, dentes e cabelos (quando o bulbo capilar não está presente). Outra vantagem do DNAmit em relação ao DNA nuclear é que, como em uma célula há muito mais DNAmit do que DNA nuclear, ainda que aquele tipo de DNA seja mais pobre e limitado em informação genética e, por isso, não permita identificações personalíssimas em amostras biológicas degradadas, o sequenciamento do DNAmit pode ser uma boa, quando não a única, alternativa.
Sequenciamento do DNAmit
O sequenciamento do DNAmit foi utilizado pela primeira vez na identificação de restos mortais de soldados que lutaram na Guerra do Vietnã. A tecnologia do DNAmit foi usada também na identificação de vítimas do atentado de 11 de setembro de 2001, na cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos.
Ressalta-se que, em testes de paternidade, o DNAmit pode ser usado para investigar uma mesma linhagem materna. Entretanto, o DNAmit não tem aplicabilidade para pesquisas sobre linhagem paterna.
TESTES DE PATERNIDADE
Os testes de paternidade são utilizados quando se busca determinar vínculo biológico entre pai, mãe e filho(a), através da tecnologia do DNA. As investigações de paternidade/maternidade podem ser de três tipos, a depender dos doadores de material genético para as análises.
Teste trio
São realizados quando os personagens pai, mãe e filho(a) da suposta relação consanguínea fornecem material biológico para os exames. Usualmente, estes testes são baseados em análises de DNA autossômico.
Teste duo
São realizados quando a intenção é verificar o vínculo biológico entre filho e pai ou mãe, presente para fornecer seu próprio material biológico. Neste caso, em geral, análises do DNA autossômico são suficientes.
Teste por deficiência
São realizados quando se busca conhecer a identidade de um dos progenitores, o qual não está presente para fornecer seu próprio material genético, em razão de morte, desaparecimento ou, até mesmo, recusa. Neste caso, através de parentes com vínculo biológico próximo, faz-se a reconstrução do perfil genético do suposto pai/mãe ausente. Como vimos anteriormente, análises do DNA autossômico podem não ser suficientes, sendo necessário que DNA de cromossomo sexual e/ou mitocondrial sejam analisados também. A escolha da melhor metodologia depende do sexo do pretenso filho, do sexo do suposto progenitor e do grau de vínculo genético dos parentes que fornecerão material biológico para os exames. Em muitos casos, testes desta natureza são apenas excludentes de paternidade/maternidade, pois os resultados das análises podem não ser confiáveis. Há outros casos que o máximo que se consegue é indicar o núcleo familiar de consanguinidade do pretenso filho.
Fatores que podem interferir com o resultado do teste de DNA
O código genético de um indivíduo é uma informação de identidade muito segura e não é alterado por drogas e álcool, ainda que consumidos em caráter abusivo; medicamentos, mesmo aqueles controlados; alimentos, de todos os tipos; estilo de vida; enfermidades, mesmo as mais graves; e procedimentos cirúrgicos.
Deficiências físicas ou mentais, inatas ou adquiridas, também não interferem com o material genético de um indivíduo.
Atenção
Por outro lado, se o doador da amostra biológica recebeu transfusão sanguínea ou transplante de medula nos últimos seis meses, é possível que o material genético da pessoa que forneceu o sangue ou a medula possam interferir com o doador da amostra biológica que será utilizada nos testes de paternidade. Isso porque ainda estarão circulando em seu sangue células do sangue do doador.
Outra circunstância que pode limitar a identificação da identidade de suposto pai ou mãe é em caso de haver gêmeo univitelino. Neste caso, o DNA do suposto pai ou mãe é sequenciado, mas como ele/ela possui um irmão(a) gêmeo(a) monozigótico(a), geneticamente, não há como distinguir tais pessoas.
Cálculos de paternidade
Lembra quando dissemos que algumas continhas matemáticas estão envolvidas nas análises de DNA?
Pois é, na verdade, não são meras continhas, e sim uma análise estatística feita para calcular a probabilidade de um indivíduo ser pai ou mãe biológico de outro indivíduo, contra a probabilidade de qualquer outro indivíduo da população ser.
Essas análises são necessárias para indicar a confiança do teste de paternidade, já que seu resultado tem consequências sérias na vida das pessoas. Desta forma, embora a legislação brasileira não tenha estabelecido parâmetros mínimos de confiabilidade para o resultado dos testes de paternidade, idealmente, só devem ser aceitos testes em que a probabilidade de paternidade/maternidade seja de, pelo menos, 99,99%.
CASO PARA REFLETIR
Chegamos ao fim de mais um módulo. Com certeza, aprendemos bastante. Para encerrarmos nossa compreensão sobre a potencialidade dos testes de DNA e o alcance de seus resultados, vamos conhecer a história de Jenny.
A HISTÓRIA DE JENNY
Jenny é americana e tem quatro irmãos, todos mais velhos. Desde sua adolescência, sempre quis saber um pouco mais sobre seus ancestrais e, por causa disso, se dedicou a estudar a árvore genealógica da família, tanto pelo lado da mãe quanto pelo do pai. Em 2015, curiosa para saber o que os testes de DNA poderiam revelar sobre sua origem étnica, encomendou um kit de análise em um laboratório qualquer. Quando os resultados chegaram, as descobertas não foram surpresas e revelaram que sua ascendência era prioritariamente britânica, havendo miscigenação com escoceses e escandinavos.
Como diferentes laboratórios trabalham com diferentes bancos de dados, no ano seguinte, Jenny realizou um novo teste em outro laboratório. Dessa vez, ela conseguiu convencer um de seus irmãos a fazer também. Os resultados de ambos chegaram por e-mail, e de cara a frase “Relacionamento estimado: meio-irmão” a impactou. Na hora, ela pensou que alguém deveria ter errado. Mas quem? Certamente, pensou, deve ter sido o laboratório, afinal, os exames foram muito baratos. Não, o laboratório, não. Quem teria errado era o seu irmão, que, provavelmente, não fez o teste direito.
Atormentada pela dúvida, sob a justificativa que precisava buscar outros ramos da genealogia da família, Jenny pediu a uma prima de seu pai, uma senhora bem idosa, com mais de 90 anos, que realizasse o teste de DNA. Quando a conclusão das análises do material genético da prima chegou, Jenny ficou péssima. Ela e a prima não tinham nenhum vínculo biológico.
Obcecada, Jenny enviou testes de presente para seus outros três irmãos, descobrindo que todos eram irmãos de pai e mãe iguais, enquanto ela compartilhava com eles apenas a linhagem materna. O exame de DNA da mãe também foi feito e confirmou o vínculo de Jenny com a mãe e os meios-irmãos.
Nesta época, Jenny tinha 50 anos. Durante toda a sua vida, foi criada por um homem que a amava e que ela amava e, não só isso, que ela pensava ser seu pai. Fora isso, e seus irmãos e sobrinhos? Agora eles eram meios-irmãos e meios-sobrinhos? Jenny não se sentia mais totalmente da família e isso a abalou profundamente.
A fim de tirar essa história a limpo, Jenny procurou a mãe, então com 87 anos e com a saúde bastante frágil por conta de um câncer. Ao contar para a mãe sobre os testes de DNA, percebeu que esta começou a tremer. Sem ter como negar, a mãe contou que havia traído o marido e acabou ficando grávida do sujeito. Contou também que o marido nunca soubera de nada e havia morrido, há 10 anos, acreditando ser o pai da Jenny, sem nunca ter suposto nada em contrário. Por fim, disse a Jenny que nunca contou ao homem que ele tinha tido uma filha.
Jenny, que havia sofrido muito pela morte do pai, passou por um novo processo de luto, agora, pela morte da filha que ela foi e pela que ela nunca foi.
Como já dissemos, desde que os testes de DNA passaram do campo da ficção para o mundo real, em 1986, com a resolução do primeiro caso forense que vimos no módulo anterior, a aplicação de exames genéticos trouxe muitos benefícios para a humanidade, revolucionando, sobretudo, conhecimentos na área de saúde e das investigações forenses.
Oscar Wild teria dito que ética diz respeito às coisas que fazemos quando todos estão olhando, e que o caráter estaria relacionado com aquilo que fazemos enquanto ninguém está olhando. Será que a tecnologia do DNA representa uma nova perspectiva para o caráter humano?
O DNA PARA CONTROLE DA FAUNA SILVESTRE BRASILEIRA EM CRIATÓRIOS: EVITANDO FRAUDES E O TRÁFICO DE ANIMAIS
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MÓDULO 4
Identificar os limites da Genética como ferramenta principal ou coadjuvante em desastres com múltiplas vítimas fatais
GENÉTICA APLICADA A INVESTIGAÇÕES DE DESASTRES EM MASSA
Neste módulo, estudaremos mais uma área de aplicação da Genética Forense: a identificação de pessoas em casos de desastres em massa. Antes de começarmos, precisamos conceituar o que é considerado desastre em massa e quais são as particularidades de eventos de tamanha envergadura.
Conceito de desastres em massa
Conhecer os diferentes tipos de desastres em massa e suas particularidades é primordial para a definição das técnicas que serão utilizadas na identificação das vítimas.
Ponte Rio Niterói
Ponte que liga os municípios do Rio de Janeiro e Niterói, no Estado do Rio de Janeiro.
Vire e mexe, quando parecia que ia tudo bem, boom!, acontece algum desastre terrível em algum lugar. Por exemplo, no início do mês de outubro de 2020, houve um acidente na Ponte Rio Niterói, envolvendo um caminhão e nove carros. Por sorte, ninguém ficou ferido. No entanto, por conta desse desastre, quem estava no Rio de Janeiro e pretendia voltar para Niterói enfrentou um engarrafamento de quase duas horas só para atravessar a ponte, o que, em condições normais, leva menos de 20 minutos.
Todos devem se lembrar do desastre que tirou a vida do jornalista Ricardo Boechat e do piloto do helicóptero Ronaldo Quattrucci, em fevereiro de 2019. Ah! E o desastre com o avião do então candidato à presidência da República, nas eleições de 2014, Eduardo Campos? Naquele desastre, além de Eduardo Campos, outras seis pessoas que estavam a bordo da aeronave morreram. E quanto à tragédia do Morro do Bumba, em Niterói? Esse sim foi um desastre terrível: 267 pessoas morreram após um deslizamento de terra. Até hoje, 20 anos depois, ainda há famílias que não receberam as moradias prometidas pelas autoridades, o que para elas, sem dúvida, é mais um desastre em suas vidas.
Placa indicando zona de risco de tsunami, na província de Phuket, na Tailância, onde, na manhã de 26 de dezembro de 2004, um tsunami foi responsável pela morte de 230 mil pessoas.
Antes de prosseguirmos, vamos conhecer as definições do termo desastre de acordo com a língua portuguesa:
1) Acontecimento funesto, geralmente, inesperado, que provoca danos graves de qualquer ordem, soçobro; 2) Acidente que envolve meios de transporte; 3) Fracasso, geralmente, profissional ou afetivo, que traz consequências desagradáveis, fiasco; 4) Qualquer acontecimento lamentável que ocorre com alguém ou que é praticado por alguém de maneira involuntária.
(MICHAELIS, 2020).
Bem, por certo, todos concordamos com as definições apresentadas em tal tira-dúvidas. Quem não acha que é um desastre descobrir que seu carro não estava estacionado exatamente onde deveria estar?
Todos os exemplos dados acima são de desastres. No entanto, em termos de Defesa Civil, existe uma definição técnica para o termo desastre. Por esta óptica, desastre seria o resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem, sobre um sistema vulnerável, causando danos humanos, materiais e ambientais e consequentes prejuízos econômicos e sociais, cuja resposta excederia a capacidade da comunidade ou sociedade afetada de lidar com a situação utilizando seus próprios recursos.
Defesa civil
De acordo com a Secretaria Nacional de Defesa Civil, defesa civil pode ser compreendida como o conjunto de ações de prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação com o objetivo de reduzir os riscos de desastre.
Eventos adversos
De acordo com a Secretaria Nacional de Defesa Civil, em análise de risco, evento adverso é a ocorrência que pode ser externa ao sistema, quando envolve fenômenos da natureza, ou interna, quando envolve erro humano ou falha do equipamento, e que causa distúrbio ao sistema considerado.
Sugerimos que vocês releiam a definição que acabamos de apresentar e, também, procurem saber sobre um vazamento de óleo que ocorreu em janeiro de 2000, na Baía de Guanabara, ou sobre um avião da companhia Air France que caiu no Atlântico, durante um voo que saiu do Rio de Janeiro com destino a Paris, em junho, de 2009.
Esses dois acidentes exemplificam bem o que, à luz da técnica, chamamos de desastres em massa. Reflitam sobre duas ideias trazidas tanto na definição acima apresentada quanto nos dois casos em questão. Desastre é o resultado de eventos adversos que excede a capacidade da comunidade afetada em lidar com a situação utilizando seus próprios recursos. Completando esse entendimento, para ser considerado um desastre em massa, tem que haver morte de pessoas. Agora ficou claro?
Vazamento de óleo
Em 2000, um duto de óleo da Petrobrás rompeu-se e provocou um vazamento de mais de um milhão de litros de óleo nas águas da Baía de Guanabara. A mancha, que se espalhou por uma área de cerca de 50km², atingiu mais de 20 praias. O episódio, que não chegou a matar ou ferir pessoas, entrou para a história como um dos maiores acidentes ambientais do Brasil.
Avião da companhia Air France
Em 2009, por uma falha mecânica, um avião da companhia francesa Air France, que estava fazendo um voo regular, saindo do Rio de Janeiro em direção a Paris, sem emitir qualquer aviso às torres de comando, caiu no Oceano Atlântico e provocou a morte das 228 pessoas que estavam a bordo.
Ficou claro também por que o vazamento de óleo, na Baía de Guanabara, em 2000, não é considerado um desastre em massa, apesar de ter sido um desastre ambiental de grandes proporções?
Operações de resposta em caso de desastres
Deve haver uma padronização das respostas em caso de desastres de modo que a coleta de amostras para identificação de potenciais vítimas atenda aos padrões de qualidade e possam ser utilizadas.
Pela compreensão do conceito de desastre em massa, trazida pelos exemplos apresentados, podemos concluir que os desastres são eventos repentinos.
De acordo com a Secretaria Nacional de Defesa Civil, estatisticamente, um evento é a ocorrência de um acontecimento ou de um fenômeno aleatório, em um conjunto ou sistema determinado, o qual pode ser previsto a priori. Mas, ainda que ele possa ser previsto, por via de regra, seu acontecimento pega a muitos de surpresa e, por isso, são repentinos.
Desastres são eventos que, ainda que previsíveis, não avisam quando vão acontecer. O ocorrido no município de Angra dos Reis, em 2010, ou na Região Serrana do Estado do Rio de Janeiro, no ano seguinte, são exemplos de como a previsibilidade do fato se combina com a imprevisibilidade do momento nos desastres em massa.
Devido à imprevisibilidade de ocorrência de um desastre, é certo que as autoridades locais não estão preparadas para lidar com a questão, que, aliás, exige respostas imediatas. Você se lembra onde estava na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013? Pois é, naquela madrugada, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, vários jovens estavam se divertindo na boate Kiss, quando houve um incêndio que matou 242 pessoas e feriu outras 680. O município de Santa Maria, por óbvio, não tinha como responder àquela tragédia com tantos mortos e feridos.
Angra dos Reis
Nas primeiras horas de 2010, em decorrência de fortes chuvas, ocorreram dois deslizamentos de terra, em pontos diferentes da cidade fluminense de Angra dos Reis, que levaram cerca de 50 pessoas à morte. No deslizamento no Morro da Carioca, a ocupação irregular da encosta foi o que determinou a tragédia. Já na Praia do Bananal, na Ilha Grande, o soterramento da Pousada Sankay ocorreu porque esta estava no sopé de uma encosta.
Região Serrana
Em janeiro de 2011, várias cidades da Região Serrana fluminense, como Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, foram afetadas por enchentes e deslizamentos de terra que vitimaram, de forma fatal, 916 pessoas. Nas áreas atingidas, observou-se um mesmo padrão de ocupação irregular nas encostas de morros e nas margens de rios. Para quem compreende o problema da ocupação irregular, a ocorrência de fatos desta natureza é absolutamente previsível, mas o momento não.
Boate Kiss
Exames periciais realizados depois da tragédia do incêndio na boate Kiss identificaram negligência quanto à segurança das instalações.
Atenção
A capacidade de resposta é um dos principais problemas em caso de desastre, pois equipes de resgate, corporações de polícia e perícia, serviços de emergência médica e todos os demais serviços de uma localidade não possuem condições operacionais para atender às consequências de tragédia com múltiplas vítimas fatais, nos vários âmbitos de seu desdobramento.
Por isso, na ocorrência de um desastre em massa, quando a capacidade de atendimento de uma localidade é superada, cabe às autoridades locais procurar ajuda imediatamente. A partir daí, diversas agências, com diferentes atribuições e limites legais, trabalharão de forma integrada e, assim, o devido atendimento poderá ser prestado às vítimas e aos seus familiares e amigos de forma célere e eficiente.
Exemplos de agências governamentais que atuam em caso de desastre em massa: governos municipal, estadual e federal, Corpo de Bombeiro, Secretarias de Defesa Civil, instituições policiais e periciais, Forças Armadas, serviços de atendimento móvel de emergência, hospitais públicos, Institutos Médicos Legais, laboratórios forenses públicos etc.
Exemplos de agências não governamentais que atuam em caso de desastre em massa: companhias de abastecimento de água e esgoto, energia elétrica e gás, vários tipos de organizações não governamentais etc.
Classificação dos desastres em massa
Os desastres em massa podem ser classificados com base em dois aspectos:
Causa motivadora
População envolvida
Quanto à causa motivadora, os desastres podem ser classificados como natural, não natural e misto, conforme esclarecido no quadro abaixo:
Classificação dos desastres quanto à causa motivadora
TIPO DE CAUSA |
CARACTERIZAÇÃO DA CAUSA |
EXEMPLOS |
---|---|---|
Natural |
Desastres causados por força da natureza, sem a interferência humana. |
Terremoto, maremoto, vendaval, erupção vulcânica, inundações, deslizamento de terra etc. |
Não natural |
Desastres causados exclusivamente por interferência humana, seja por ação seja omissão. |
Acidentes de trânsito, distúrbios em locais de concentração em massa, terrorismo, guerra, acidentes em instalações físicas etc. |
Mista |
Desastres causados por força da natureza e interferência humana associados. |
Deslizamento de terra em encostas ocupadas, alagamento de cidades, cujas margens dos rios são ocupadas etc. |
Quanto à população envolvida, os desastres podem ser classificados como aberto, fechado e misto, conforme esclarecido no quadro abaixo:
TIPO DE POPULAÇÃO |
CARACTERIZAÇÃO DA POPULAÇÃO |
EXEMPLOS |
---|---|---|
Aberta |
Desastres nos quais o número de vítimas é desconhecido. |
Deslizamentos de terra em Angra dos Reis (2010) e Região Serrana (2011), incêndio na boate Kiss (2013) etc. |
Fechada |
Desastres nos quais o número de vítimas é conhecido. |
Queda de avião da Air France (2009) etc. |
Mista |
Desastres que envolvem as duas situações anteriores. |
Rompimento de barragem em Mariana (2015) e Brumadinho (2019), desastres que atingiram funcionários que trabalhavam nesses locais (fechado) e pessoas das cidades (aberto). |
LIMITAÇÃO DA APLICAÇÃO DA GENÉTICA FORENSE EM DESASTRES DE MASSA
Diante de tudo que vimos até aqui, você consegue imaginar por que, embora o material genético seja uma fonte de informações individualizadoras, em um caso de desastres em massa, a Genética Forense se depara com limitações à sua plena aplicação? Não? Então, iremos direto ao ponto!
Note que, nos dois módulos anteriores, a identificação de pessoas com o emprego da Genética seguiu um padrão semelhante de procedimento:
Em um local de crime, por mais que haja muitos vestígios biológicos para serem coletados, geralmente, a identificação do material genético se restringe a um grupo pequeno de pessoas, às vezes até há apenas duas pessoas, o criminoso e a vítima. Vimos que as amostras questionadas coletadas na cena de crime são comparadas com amostras de referência da vítima, de eventuais suspeitos e de bancos de dados de perfis genéticos. Sem dúvida, é um trabalho relativamente complexo, no entanto, não vai muito além disso.
Em casos de teste de paternidade, a complexidade da determinação da identidade do indivíduo pode ser bem simples, como nas análises do tipo trio, em que pai, mãe e filho se apresentam para doar suas amostras biológicas; até relativamente complexas, nas situações deficitárias de material genético de um dos progenitores, na qual através de parentes com vínculo biológico próximo, faz-se a reconstrução do perfil genético do suposto pai/mãe ausente. Nos testes de paternidade, as poucas amostras questionadas envolvidas são comparadas entre si e, dependendo da situação, com as amostras de referências de alguns familiares. Portanto, o trabalho aqui também é relativamente simples.
Entretanto, quando se trata de um desastre envolvendo múltiplas vidas, como foi o caso do incêndio no supermercado Ycuá Bolaños, em Assunção, no Paraguai, em 2004, no qual 327 pessoas morreram, como identificar todas essas pessoas? Considerando que os exames de DNA são análises comparativas, como buscar as análises de referência?
Sem dúvida, como vimos acima, há os desastres fechados, nos quais as autoridades sabem quem são as vítimas e, portanto, fica mais fácil, entre seus respectivos familiares, coletar amostras de referência para fins de comparação. No entanto, no caso do incêndio ocorrido no supermercado, as eventuais vítimas conhecidas seriam as pessoas que, em tese, estariam trabalhando no local, naquela hora. Com relação aos clientes, o que dizer? Como saber quem estava lá? E reparem que, aqui, estamos falando de um caso em que as vítimas morreram queimadas ou asfixiadas, mas seus corpos estavam íntegros. E nos desastres em que as vítimas são submetidas a um grande impacto e seus corpos se fragmentam? Em uma explosão na região portuária de Beirute, ocorrida em agosto de 2020, na qual 100 pessoas morreram, muitos dos corpos foram fragmentados, o que aumenta, ainda mais, o esforço de comparação, tendo em vista o número de amostras questionadas.
Incêndio no supermercado Ycuá Bolaños
O supermercado Ycuá Bolaños, na verdade, era um complexo comercial de 3 andares, que incluía, além do mercado, lojas, restaurantes e escritórios. Quando o incêndio começou, os donos fecharam as portas para que os clientes não saíssem sem pagar. O incêndio levou cerca de 7 horas para ser controlado. 327 pessoas morreram.
Como buscar as análises de referência?
Não se esqueçam de que, usualmente, as vítimas de desastres em massa são cidadãos comuns, portanto, seu material genético não estará armazenado em banco de dados de perfis genéticos de criminosos e, até mesmo, em outros bancos de dados.
Região portuária de Beirute
Na região portuária de Beirute, em agosto de 2020, inicialmente houve uma pequena explosão, em seguida, incêndio e novas explosões culminaram com a detonação do material inflamável que, por razões mal explicadas, estava sendo mantido no local. A onda de choque que se seguiu atingiu letalmente as pessoas que estavam próximas ao epicentro das explosões, lançando-as longe e fragmentando seus corpos.
Atenção
Portanto, além da dificuldade que a realização de vários exames de DNA, simultaneamente, exige, em termos de infraestrutura laboratorial, por vezes, a aplicação da Genética Forense é limitada, como, por exemplo: quando as amostras biológicas não contêm material genético de boa qualidade; quando a discriminação de pessoas para o fornecimento de amostras de referência é difícil ou impossível; quando as análises não chegam a resultados conclusivos etc.
Por isso, como veremos em breve, no caso de desastres envolvendo múltiplas vítimas fatais, aplica-se uma metodologia aceita internacionalmente, na qual estão previstos procedimentos que integram várias áreas científicas para a identificação de pessoas.
RECONHECER OU IDENTIFICAR: O QUE É MELHOR FAZER?
Existe uma grande diferença entre reconhecer e identificar. Vocês saberiam explicar? Vejamos:
RECONHECER
Identificar alguém ou algo que se conheceu anteriormente.
IDENTIFICAR
Estabelecer a identidade de alguém ou algo através da soma de características coincidentes e da exclusão de características discordantes.
Responda agora, a fim de confirmar a identidade de uma pessoa morta, o que é melhor, reconhecer ou identificar?
Resposta
Acertou quem disse IDENTIFICAR. A identificação de pessoas, em caso de desastres em massa, não é um processo único nem presuntivo. Ao contrário, ela é processada por método probabilístico e baseada em requisitos técnicos e biológicos.
Vejamos quais são esses requisitos:
Requisitos dos Métodos de Classificação
REQUISITOS BIOLÓGICOS |
|
---|---|
Unicidade |
Característica única, rara ou difícil de ser encontrada, de modo que apenas um indivíduo pode apresentá-la. |
Imutabilidade |
Característica estável, que não se altera com o passar do tempo. |
Perenidade |
Característica duradoura, capaz de resistir às agressões do meio externo. |
REQUISITOS TÉCNICOS |
|
Praticabilidade |
Método de simples realização, fácil registro e baixo custo. |
Classificabilidade |
Método capaz de ser classificado de forma útil para rápida localização em arquivos. |
Como veremos à frente, a fim de atender a critérios técnicos e biológicos, a metodologia de identificação de pessoas deve ser confiável e segura.
Preparação do Rio de Janeiro para enfrentar eventuais desastres em massa nos Jogos Olímpicos de 2016
PROCEDIMENTOS DE IDENTIFICAÇÃO DE PESSOAS EM DESASTRES EM MASSA
A identificação de vítimas de desastres em massa é, sem dúvidas, uma das tarefas mais importantes no contexto de uma tragédia. No entanto, devido à variabilidade de situações, tais como incerteza quanto ao número de vítimas envolvidas; possibilidade das vítimas estarem queimadas e/ou fragmentadas; probabilidade de haver vítimas de nacionalidades diferentes e de vínculos socioafetivos e biológicos de difícil acesso; várias agências trabalhando simultaneamente; existência de familiares e amigos desesperados por informações; pressão da imprensa; possibilidade do desastre ser criminoso; escassez de recursos etc., faz-se indispensável a adoção de uma metodologia padrão, que atenda aos rigores técnico-científicos e que seja aceita internacionalmente.
Atualmente, o Manual de Identificação de Vítimas de Desastre da Organização Internacional de Polícia Criminal, mundialmente conhecida como INTERPOL, apresenta uma metodologia aceita internacionalmente e que serve de guia para a orientação dos procedimentos de identificação de pessoas aqui no Brasil.
Tipos de métodos de identificação
De acordo com a metodologia estabelecida pela INTERPOL, a identificação de vítimas de desastres em massa deve ser fundamentada em dois tipos de métodos distintos: primários e secundários. Veja, no quadro abaixo, o que compreende cada método.
MÉTODOS PRIMÁRIOS DE IDENTIFICAÇÃO |
||
---|---|---|
São os métodos de eleição para a identificação de pessoas, pois são baseados em conhecimentos científicos e produzem resultados seguros e confiáveis. |
||
Papiloscopia |
Odontologia Forense |
Genética Forense |
MÉTODOS SECUNDÁRIOS DE IDENTIFICAÇÃO |
||
São considerados métodos complementares ao processo de identificação, portanto devem ser considerados conjuntamente com o resultado de outros métodos e nunca de forma isolada. |
||
Informações médicas |
Antropologia Forense |
Pertences da vítima |
Percebam que a adoção de tais métodos diferem completamente da rotina de identificação de pessoas nos Institutos Médicos Legais do Brasil e do mundo. Isso porque, no caso de desastres em massa, os métodos tradicionais de identificação por comparações individuais, baseados, na maioria dos casos, em dados descritivos, não são aplicáveis. Na ocorrência de desastres em massa, para que a identificação das vítimas seja confiável e segura, necessita-se dividir as ações de identificação em fases distintas e, com o uso de um banco de dados informatizado, processar e comparar todas as informações obtidas ao longo do processo. Vejamos que fases são essas para que você possa entender melhor como funciona o processo.
Instituto Médico Legal
O IML é o órgão oficial que realiza necropsias em casos de morte por causas externas, ou seja, que decorrem de lesão provocada por violência (homicídio, suicídio, acidente ou morte suspeita) e, também, de envolvidos em ocorrências da Polícia Civil. Seus serviços são fundamentais para a proteção dos direitos humanos e para o fortalecimento do arcabouço probatório e a consequente redução da impunidade. Fonte: Conselho Federal de Medicina.
Fases do processo de identificação de pessoas
O processo de identificação de vítimas de desastres em massa é composto por uma sequência muito bem definida de atividades, que permite a identificação de pessoas em larga escala e a atuação de múltiplas equipes de trabalho sob uma mesma coordenação. Essas fases se iniciam no próprio local do desastre e se estendem até a devolução dos corpos aos familiares. Como é possível ver no quadro abaixo, a identificação de vítimas de desastres em massa é dividida em 4 fases, que se desenvolvem simultaneamente.
Fases do processo de identificação de vítimas em desastres em massa:
FASE |
NOME |
DESCRIÇÃO |
---|---|---|
1 |
LOCAL |
Envolve atividades que vão desde a recuperação de corpos, restos humanos e toda sorte de vestígios no local de desastre, até o seu armazenamento temporário, previamente aos exames no necrotério. |
2 |
ANTE MORTEM |
Envolve a coleta de informações das vítimas com seus familiares, amigos e demais pessoas próximas. |
3 |
POST MORTEM |
Envolve o exame detalhado dos corpos e restos mortais. |
4 |
RECONCILIAÇÃO ou COMPARAÇÃO |
Envolve a contraposição das informações ante mortem e post mortem. |
Segundo o protocolo de identificação de pessoas estabelecido pela INTERPOL, ao final do processo, um comitê de identificação homologa o trabalho realizado e elabora um relatório, cujo resultado embasa a declaração de óbito da vítima e a entrega do corpo e/ou dos restos mortais identificados aos familiares.
O DNA E A IDENTIFICAÇÃO DE PESSOAS EM DESASTRES EM MASSA
Ufa! Finalmente chegamos ao cerne dos nossos estudos, a aplicação da tecnologia de DNA para a identificação de pessoas. Atentem-se que aquilo que vimos anteriormente sobre os desastres em massa são apenas a ponta do iceberg.
Há muitos detalhes e formalidades que não foram tratados, pois isso estenderia muito o nosso tema. Por outro lado, o conhecimento que apresentamos é imprescindível para que você entenda as dificuldades que o exame do material genético das vítimas enfrenta.
A Genética Forense como ferramenta de identificação de pessoas em desastres em massa
Sem dúvidas, a tecnologia do DNA é um método que preenche adequadamente os requisitos biológicos de identificação. Aliás, em comparação com os outros métodos primários, como a Papiloscopia e a Odontologia Forense, é o único capaz de fornecer informações de identidade de qualquer tipo de tecido, desde que a amostra possua DNA em quantidade e qualidade suficientes para a realização dos exames.
Recomendação de protocolos e práticas
Para fins de comparação, haja vista que os exames de DNA são sempre comparativos, as amostras biológicas coletadas nos corpos das vítimas ou em fragmentos de corpos (amostras questionadas) devem ser comparadas com amostras de referência, que podem ser diretas ou indiretas.
Amostras de referência diretas são aquelas obtidas da própria vítima a partir de objetos (escova de dente ou cabelo, roupa não lavada etc.) ou material biológico (amostra tecidual de biópsia, amostra de sangue etc.) que guardariam o DNA da pessoa em momento anterior ao desastre.
Amostras de referência indiretas são aquelas obtidas de parentes. Quanto mais próximos e mais parentes fornecerem amostras, maior será o poder discriminatório do resultado das análises de DNA.
O DNA como uma ferramenta principal de identificação
O DNA é, seguramente, o melhor método de eleição para a identificação de pessoas, haja vista sua eficiência comprovada cientificamente. Na identificação de vítimas de desastres em massa, a aplicação do DNA segue uma rotina comum de análises, baseada no sequenciamento do DNA autossômico.
Desde o trabalho pioneiro do geneticista Alec Jeffreys, que, em 1986, conseguiu identificar o criminoso utilizando marcadores genéticos do tipo minissatélites (VNTR), a tecnologia do DNA evoluiu muito. Atualmente, são utilizados marcadores do tipo microssatélites (STR). No entanto, em cenários investigativos em que o material genético é escasso ou muito degradado, tais como a identificação de vítimas em desastres em massa, a recuperação de perfis genéticos torna-se mais difícil devido à perda de STRs. Sendo assim, como comentamos no módulo passado, outra classe de polimorfismo genético vem sendo utilizada para que o acesso às informações biparentais dos cromossomos autossômicos seja garantido. Esta nova classe diz respeito ao Polimorfismo de Nucleotídeos Único (do inglês, Single Nucleotide Polymorphism - SNP).
Os SNPs são caracterizados pela variação de uma base em determinada posição da sequência genética entre os indivíduos. Esses polimorfismos são extremamente abundantes no genoma humano, havendo aproximadamente um SNP para cada mil nucleotídeos. Um dos desafios desta técnica é que, diferente dos loci STRs, os loci SNPs fornecem menos informações genéticas, sendo necessária a análise de um amplo painel para obter um poder discriminatório confiável, equivalente àquele assegurado pelas análises baseadas nos microssatélites.
No entanto, quando não há DNA autossômico em quantidade e/ou qualidade suficiente para permitir a realização das análises ou garantir a confiabilidade dos resultados, recomenda-se o sequenciamento de marcadores genéticos relacionados aos cromossomos sexuais e ao DNA mitocondrial. No entanto, como já falamos, em alguns casos, as informações obtidas a partir dessas análises se prestam, apenas, a excluir pessoas ou a evidenciar possíveis vínculos biológicos entre pessoas, mas não a apontar a identidade da vítima.
Resumindo
Como vimos, dada a quantidade de DNA mitocondrial em uma mitocôndria e a quantidade de mitocôndrias em uma célula, é possível encontrar uma boa quantidade de DNA mitocondrial em uma amostra biológica. Além disso, pela resistência à degradação desta molécula e devido ao conhecimento técnico das regiões de polimorfismo do material genético mitocondrial, o sequenciamento do DNA mitocondrial tem se mostrado um recurso muito útil para a identificação de pessoas em casos de desastres em massa. Seus resultados, por óbvio, não são determinísticos, mas podem ser usados para compor um conjunto de evidências relacionadas a uma vítima e, assim, permitir sua identificação.
O DNA como uma ferramenta coadjuvante de identificação
Como estudamos anteriormente, há algumas situações em o exame de DNA não consegue identificar inequivocamente uma pessoa. Vejamos:
Por exemplo, se dois irmãos gêmeos univitelinos estiverem entre as vítimas de um desastre, somente com o uso da tecnologia do DNA não será possível distinguir um do outro, sendo necessário que informações advindas de outros campos do processo de identificação sejam usadas para determinar a identidade personalíssima de cada um dos irmãos. |
Há casos, também, em que não há material genético em quantidade suficiente e em boa qualidade para ser coletado nas vítimas, como, por exemplo, em corpos carbonizados. Nestas situações, é possível conseguir fazer a tipagem do DNA mitocondrial e assim identificar, pela linhagem materna, que uma dada vítima estaria vinculada, biologicamente, a uma certa família. No entanto, se entre as vítimas houver irmãos ou mãe e filhos, novamente a identificação do material genético não será determinante para identificar a vítima de forma personalíssima. |
Quando, entre as vítimas, há um filho adotado que não possui filhos, sua identificação através de DNA ficará absolutamente impossibilitada se não houver como coletar amostras de referência diretas ou no caso das indiretas, de parentes biológicos próximos da vítima. |
Neste caso, dados papiloscópicos e médicos seriam fontes de informações indispensáveis à identificação individual. Além disso, informações quanto à tatuagem, prótese no corpo, acessório de adorno (como relógio, brinco ou anel), ou vestimenta também poderiam ser úteis para a identificação da pessoa.
Para a resolução de casos assim, as informações genéticas, quando possível, precisam ser complementadas através de outros recursos de identificação para que a identidade da vítima possa ser determinada de forma inequívoca.
Conclusão dos nossos estudos
Chegamos ao final dos nossos estudos sobre Genética Forense. Lembrem-se de que, aqui, descortinamos uma pequena janela, mas, para aqueles que, de fato, querem conhecer o universo da Genética Forense e de sua potencialidade, há muito conhecimento para ser aprendido e ampliado. Desejamos a você boa sorte e, quem sabe, no futuro, tenhamos entre nós um cientista laureado pelo Prêmio Nobel? Por que não?
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Conclusão
Considerações Finais
Durante nossos estudos, tivemos contato com duas áreas cujos conhecimentos vêm trazendo novas perspectivas às investigações forenses: a Microbiologia e a Genética.
Vimos que a Microbiologia Forense ainda é uma disciplina jovem, mas que, mesmo engatinhando, já mostrou seu potencial para determinar o uso de microrganismos no cometimento de crimes, seja em circunstâncias pontuais seja em situações de bioterrorismo.
Vimos também por que a Genética causa tanto deslumbramento no mundo forense, sendo, atualmente, a principal ferramenta na identificação de pessoas, que, na maioria dos casos, não têm alternativa senão aceitar o resultado das análises de DNA.
Conhecemos a aplicação do DNA nos testes de paternidade/maternidade, que contribuem para elucidar casos diversos. Os desastres em massa, embora não tão frequentes e imprevisíveis, têm nos testes de DNA ferramentas poderosas para a identificação das vítimas.
Entendemos a importância de análises laboratoriais confiáveis e seguras; da observância rigorosa da técnica e da atualização do conhecimento, pois, tanto a Microbiologia quanto a Genética têm potencial para subsidiar, objetivamente, investigações forenses elucidativas e conclusivas.
Tudo o que acabamos de abordar trouxe um ponto de vista novo à medida que apresentou um campo de trabalho diferente, atual e importante para a sociedade.
Podcast
CONQUISTAS
Você atingiu os seguintes objetivos:
Reconheceu a aplicação da Microbiologia em investigações forenses.
Justificou a importância da Genética na solução de crimes.
Distinguiu a aplicação da Genética nos exames de paternidade/maternidade.
Identificou os limites da Genética como ferramenta principal ou coadjuvante em desastres com múltiplas vítimas fatais.