Descrição
A importância da pesquisa de modelos qualitativo e quantitativo para a produção acadêmica. A pesquisa de campo e a análise de dados nas abordagens quantitativa e qualitativa.
PROPÓSITO
Compreender as características da pesquisa de abordagens qualitativa e quantitativa, bem como suas possíveis interfaces. Perceber que a análise de dados, proveniente da pesquisa de campo, pode tornar-se instrumento eficaz na pesquisa acadêmica, em ambas as abordagens.
OBJETIVOS
Módulo 1
Distinguir pesquisa quantitativa de pesquisa qualitativa a partir da relevância da pesquisa de campo para a produção acadêmica
Módulo 2
Reconhecer a importância da análise de dados para a pesquisa acadêmica no âmbito das análises quantitativa e qualitativa
Introdução
Depoimento (professora Mirian Goldenberg)
Quando inicio um curso presencial de metodologia de pesquisa, noto no semblante de meus alunos uma profunda desconfiança. Costumo perguntar sobre suas experiências anteriores com a disciplina e, salvo raríssimas exceções, eles são unânimes em afirmar que a matéria foi muito desinteressante em suas experiências anteriores. Com essa recepção, não é fácil iniciar um curso de dezenas de horas, semanas ou meses. Ao final do curso, no entanto, sempre encontro alunos entusiasmados, empolgados com seus projetos, e não raro com manifestações de carinho e gratidão. Aqui quero compartilhar um pouco dessa experiência prazerosa em sala de aula e mostrar que a pesquisa científica não é algo de apenas alguns eleitos, podendo ser exercida em qualquer campo de estudo.
Metodologia científica é muito mais do que algumas regras de como fazer uma pesquisa; ela auxilia a refletir e propicia um “novo” olhar sobre o mundo: um olhar científico, curioso, indagador e criativo. Portanto, a pesquisa não se reduz a certos procedimentos metodológicos. A pesquisa científica exige criatividade, disciplina, empatia, flexibilidade, humildade, interesse genuíno, organização e sensibilidade, baseando‐se no confronto permanente entre o possível e o impossível, entre o conhecimento e o desconhecimento.
Nenhuma pesquisa é totalmente controlável, com início, meio e fim previsíveis. A pesquisa é um processo em que é impossível prever todas as etapas. O pesquisador está sempre em estado de tensão porque sabe que seu conhecimento é parcial e limitado — o “possível” para ele. Nesse mesmo sentido, não existe um único modelo de pesquisa. Neste tema veremos um dos caminhos possíveis: aquele que tenho buscado seguir nas últimas quatro décadas e com diferentes abordagens de acordo com o tema escolhido.
Todos os pesquisadores precisam estar abertos para um verdadeiro debate de ideias. É a discussão dos nossos achados que pode contribuir para o amadurecimento de nosso trabalho. A pesquisa científica exige um exercício permanente de crítica e autocrítica. Por isso, aceite o estudo desse tema como um prazeroso desafio: um exercício para aprender a pensar cientificamente, com clareza, criatividade, organização e, acima de tudo, sabor.
MÓDULO 1
Distinguir pesquisa quantitativa de pesquisa qualitativa a partir da relevância da pesquisa de campo para a produção acadêmica
Ligando os Pontos
Você sabe distinguir pesquisa quantitativa de pesquisa qualitativa a partir da relevância da pesquisa de campo para a produção acadêmica? Para entendermos os conceitos envolvidos, vamos tomar por base uma situação prática do mundo contemporâneo.
Para tanto, vamos analisar o case a seguir:
Ana está em seu último ano do curso de Relações Internacionais e resolveu estudar em seu trabalho final o desenvolvimento da ciência no Brasil na década de 1980 e suas relações interinstitucionais com o exterior.
Ela poderia coletar o número de trabalhos acadêmicos de cunho científico produzidos no período, assim como fazer um gráfico com o número de programas e projetos de ciência desenvolvidos no Brasil, porém optou por trabalhar a partir do aprofundamento das relações envolvidas no que se refere ao desenvolvimento da ciência.
Dessa forma, em seu trabalho, Ana preferiu analisar os discursos presentes nos documentos do período, a fim de compreender qual era a principal abordagem do governo brasileiro na época, além de tentar conferir se esses discursos estavam de acordo com o proposto no plano de governo do Brasil de 1980.
Após a leitura do case, é hora de aplicar seus conhecimentos! Vamos ligar os pontos?
3. Ana, ao escolher seu objeto de estudo, optou por determinada metodologia de pesquisa. A partir das informações disponibilizadas no case, você, como orientador, considera que a escolha da Ana foi adequada?
CONSTRUINDO O PROBLEMA DA PESQUISA
Fazer uma pesquisa significa aprender a pôr ordem nas próprias ideias. Não importa tanto o tema escolhido, mas a experiência de trabalho de pesquisa. Trabalhando‐se bem, não existe tema que seja tolo ou pouco importante. A pesquisa deve ser entendida como uma ocasião singular para fazer alguns exercícios que servirão por toda a vida. O trabalho de pesquisa deve ser instigante, mesmo que o objeto não pareça ser tão interessante. O que o verdadeiro pesquisador busca é o jogo criativo de aprender como pensar e olhar cientificamente.
Comentário
Aqui falamos em objeto da pesquisa e não objetivos. Em Metodologia Científica, o que chamamos objeto da pesquisa é exatamente aquilo que será pesquisado. Já os objetivos de uma pesquisa dependerão de muitos fatores, inclusive do tipo de objeto pesquisado.
Qualquer tema ou assunto da atualidade pode ser objeto de uma pesquisa científica.
É preciso ter estudado muito, possuir uma sólida bagagem teórica e muita experiência de pesquisa para enxergar o que outros não conseguem ver. O pesquisador experiente descobre assuntos que podem parecer banais e os transforma em pesquisas fecundas.
O desejo de reconhecimento não só leva o cientista a comunicar os seus resultados, mas também o influencia na escolha de temas e métodos que tornem seu trabalho mais aceitável por seus pares. Quanto maior a consciência de suas motivações, mais o pesquisador é capaz de evitar os desvios (ou bias) próprios daqueles que trabalham com a ilusão de serem orientados apenas por propósitos científicos.
Existe uma hierarquia de legitimidade dentro do campo científico traçada de acordo com os temas que dão prestígio, recursos para a pesquisa, cargos universitários, publicações em editoras prestigiadas etc. Assim, falar de “liberdade de escolha” nesse campo é desconsiderar as pressões (evidentes ou sutis) às quais o pesquisador permanentemente se submete. Tendo consciência de tais pressões, muitas dificuldades e contradições podem ser mais bem compreendidas na escolha de um assunto e na sua formulação como um projeto de pesquisa.
Nessa “arte” de fazer pesquisa, o jogador precisa ter alguns atributos para poder entrar no campo científico. Alguns podem ser vistos como internos, atributos pessoais que devem fazer parte do indivíduo que deseja ser um pesquisador:
Clareza
Concentração
Criatividade
Curiosidade
Delicadeza
Disciplina
Empatia
Equilíbrio
Flexibilidade
Humildade
Iniciativa
Interesse real
Objetividade
Organização
Paciência
Paixão
Respeito ao entrevistado
Saber escutar
Tranquilidade
Outras qualidades podem ser chamadas de externas, porque dependem da formação científica do pesquisador. São elas:
As principais etapas da pesquisa científica envolvem a concepção de um tema de estudo, a coleta de dados, a apresentação de um relatório com os resultados e, em alguns casos, a aplicação dos resultados. O passo inicial está ligado à formulação do problema e consequente definição do objeto da pesquisa.
O primeiro passo é tornar o problema concreto e explícito mediante:
Imersão sistemática no assunto
Estudo da literatura existente
Discussão com pessoas que acumularam experiência prática no campo de estudo
A boa resposta depende da boa pergunta. O pesquisador deve estar consciente da importância da pergunta que faz e deve saber colocar as questões necessárias para o sucesso de sua pesquisa.
O pesquisador, ao escolher seu objeto de estudo, deve pensar em como:
Primeiro passo
Identificar um tema preciso (recorte do objeto).
Segundo passo
Escolher e organizar o tempo de trabalho.
Terceiro passo
Realizar a pesquisa bibliográfica (revisão da literatura).
Quarto passo
Organizar e analisar o material selecionado.
Quinto passo
Fazer com que o leitor compreenda o seu estudo e possa recorrer aos resultados caso queira dar continuidade à pesquisa.
Para tanto, o objeto de estudo deve responder aos interesses do pesquisador e ter as fontes de consulta acessíveis e de fácil manuseio. Quanto mais se recorta o tema, com mais segurança e criatividade se trabalha. O estudo científico deve ser claro, interessante e objetivo, tanto para as pessoas familiarizadas com o assunto quanto para as que não são. Muitos acadêmicos se perdem em parágrafos herméticos que não são compreendidos nem pelos seus pares. O pesquisador não precisa utilizar termos obscuros para se mostrar profundo. A profundidade e a seriedade do estudo podem ser mais bem percebidas se o pesquisador utilizar uma linguagem compreensível para o maior número de alunos e leitores.
A pesquisa apresenta diferentes fases.
Veremos a seguir:
A fase inicial, que pode ser chamada de exploratória, lembra uma “paquera” de dois adolescentes. É o momento em que se tenta descobrir algo sobre o objeto de desejo, quem mais escreveu (ou se interessou) sobre ele, como poderia haver uma aproximação, qual a melhor abordagem (ou metodologia) dentre todas as possíveis para conquistar esse objeto.
Em seguida, vem a fase que equivale ao “namoro”, quando há maior compromisso e que exige um conhecimento mais profundo, uma dedicação quase exclusiva ao objeto de paixão. É a fase de elaboração do projeto de pesquisa, quando o estudioso mergulha profundamente no tema estudado.
A terceira fase é o “casamento”, em que a pesquisa exige fidelidade, dedicação, atenção ao seu cotidiano, que é feito de altos e baixos. O pesquisador deve resolver os problemas que vão aparecendo, desde os mais simples (como se vestir para realizar as entrevistas) até os mais cruciais (como garantir a verba para a execução da pesquisa).
Por último, a fase de “separação”, em que o pesquisador precisa se distanciar do seu objeto para escrever o relatório final da pesquisa. É o momento em que é necessário olhar o mais criticamente possível para o objeto estudado, quando é preciso fazer rupturas, sugerir novas pesquisas. É o momento de ver os defeitos e as qualidades do objeto amado.
Metodologia
Quando se fala de metodologia, trata-se de um caminho possível para a pesquisa científica. O que determina a técnica escolhida é o problema que se quer trabalhar: só se escolhe o caminho quando se sabe aonde quer chegar.
A importância da pesquisa na vida acadêmica
PESQUISA QUANTITATIVA X PESQUISA QUALITATIVA
Durante muito tempo, as ciências se pautavam por um modelo quantitativo de pesquisa, em que a veracidade de um estudo era constatada pela quantidade de pesquisados. Muitos pesquisadores, no entanto, questionaram a representatividade e o caráter de objetividade com que a pesquisa quantitativa se revestia.
É preciso aceitar o fato de que, mesmo nas pesquisas quantitativas, a subjetividade do pesquisador está presente.
Na escolha do tema, dos entrevistados, no roteiro de perguntas, na bibliografia consultada e na análise do material coletado, existe um autor, um sujeito que decide os passos a serem dados.
Na pesquisa qualitativa, a preocupação do pesquisador não é com a quantidade de indivíduos, mas com o aprofundamento da compreensão de um grupo social, de uma organização, de uma instituição, de uma trajetória etc.
Ao se pensar nas origens da pesquisa qualitativa em ciências sociais, corre‐se o risco de se perder em um caminho longo demais que, procurando as origens das origens, não chega jamais ao fim. Poderia chegar a Heródoto (495 a.C.-425 a.C.) que, descrevendo a guerra entre a Pérsia e a Grécia, dedicou-se a esboçar os costumes, as vestimentas, as armas, os barcos, os tabus alimentares e as cerimônias religiosas dos persas e povos circunvizinhos.
Heródoto
Uma boa reflexão sobre a importância de Heródoto nesse contexto, bem como um ótimo exemplo de pesquisa podem ser encontrados no artigo O selvagem e a História: Heródoto e a questão do Outro, de Klaas Woortmann. Pesquise-o na plataforma SciELO.
Comentário
Não pretendendo fazer um caminho tão longo, mas, para situar a questão do uso de técnicas e métodos qualitativos de pesquisa nas ciências sociais dentro de uma discussão mais ampla, elucidaremos o debate entre a sociologia positivista e a sociologia compreensiva.
Os pesquisadores que adotam a abordagem qualitativa em pesquisa se opõem ao pressuposto que defende um modelo único de pesquisa para todas as ciências, baseado no modelo de estudo das ciências da natureza. Esses pesquisadores se recusam a legitimar seus conhecimentos por processos quantificáveis que venham a se transformar em leis e explicações gerais. Afirmam que as ciências sociais têm sua especificidade, o que pressupõe uma metodologia própria. Vamos conhecê-los?
Os pesquisadores qualitativistas recusam o modelo positivista aplicado ao estudo da vida social. O fundador do positivismo, Augusto Comte (foto), defendia a unidade de todas as ciências e a aplicação da abordagem científica na realidade social humana. Com base em critérios de abstração, complexidade e relevância prática, Comte estabeleceu uma hierarquia das ciências, em que a Matemática ocupava o primeiro lugar e a Sociologia ou “física social”, o último, precedida, em ordem decrescente, por Astronomia, Física, Química e Biologia. Para Comte, cada ciência dependia do desenvolvimento da que a precedeu. Portanto, a Sociologia não poderia existir sem a Biologia, que não existiria sem a Química, e assim por diante.
Segundo a perspectiva de que o objeto das ciências sociais deve ser estudado como o das ciências físicas, a pesquisa é uma atividade neutra e objetiva, que busca descobrir regularidades ou leis, em que o pesquisador não pode fazer julgamentos nem permitir que seus preconceitos e suas crenças contaminem a pesquisa.
Émile Durkheim (foto), como Comte, preocupado com a ordem na sociedade e com a primazia da sociedade sobre o indivíduo, também se posicionou a favor da unidade das ciências. Tomando “os fatos sociais como coisas”, Durkheim (1985) defendia que o social é real e externo ao indivíduo, ou seja, o fenômeno social, como o fenômeno físico, é independente da consciência humana e verificável pela experiência dos sentidos e da observação.
Durkheim acreditava que os fatos sociais só poderiam ser explicados por outros fatos sociais, e não por fatos psicológicos ou biológicos, como pretendiam alguns pensadores de seu tempo. Defendendo a visão da ciência social como neutra e objetiva, na qual sujeito e objeto do conhecimento estão radicalmente separados, Durkheim teve uma influência decisiva para que as ciências sociais adotassem o método científico das ciências naturais.
Na segunda metade do século passado, alguns pensadores, influenciados pelo idealismo de Kant, reagiram criticamente ao modelo positivista de conhecimento aplicado às ciências sociais, acreditando que o estudo da realidade social por meio de métodos de outras ciências poderia destruir a própria essência dessa realidade, já que esquecia a dimensão de liberdade e individualidade do ser humano.
A sociologia compreensiva, distinguindo “natureza” de “cultura”, mostrou que era necessário, para estudar os fenômenos sociais, um procedimento metodológico diferente daquele utilizado nas ciências físicas e matemáticas. O filósofo alemão Wilhelm Dilthey (foto) foi um dos primeiros a criticar o uso da metodologia das ciências naturais pelas ciências sociais, em função da diferença fundamental entre seus objetos de estudo. Nas primeiras, os cientistas lidam com objetos externos passíveis de serem conhecidos de forma objetiva, enquanto nas ciências sociais lidam com emoções, valores, subjetividades. Essa diferença se traduz em diferenças nos objetivos e nos métodos de pesquisa.
Para Dilthey, os fatos sociais não são suscetíveis de quantificação, já que cada um deles tem um sentido próprio, diferente dos demais, e isso torna necessário que cada caso concreto seja compreendido em sua singularidade. Portanto, as ciências sociais devem se preocupar com a compreensão de casos particulares e não com a formulação de leis generalizantes, como fazem as ciências naturais.
O maior representante da chamada sociologia compreensiva é Max Weber (foto). Para ele, o principal interesse da ciência social era o comportamento significativo dos indivíduos engajados na ação social, ou seja, o comportamento ao qual os indivíduos agregam significado considerando o comportamento de outros indivíduos.
Os cientistas sociais, que pesquisam os significados das ações sociais de outros indivíduos e deles próprios, são sujeito e objeto de suas pesquisas. Nessa perspectiva – que se opõe à visão positivista de objetividade e de separação radical entre sujeito e objeto da pesquisa – é natural que cientistas sociais se interessem por pesquisar aquilo que valorizam. Esses cientistas buscam compreender os valores, as crenças, as motivações e os sentimentos humanos, compreensão que só pode ocorrer se a ação for colocada dentro de um contexto de significado.
Fundador do positivismo
A origem do positivismo é atribuída ao francês Augusto Comte (1798-1857), autor dos famosos Sistema de Filosofia Positiva (1830-1842) e Catecismo Positivista (1852), além de outras publicações. A relação que se estabelece entre a filosofia do francês Comte – chamada de filosofia positiva ou positivismo – e as várias correntes denominadas de "positivismo" baseia-se em diversas possibilidades: a primeira, claro, é a identidade de nome em diversas situações; em seguida, alguns vínculos históricos (teóricos e políticos) entre eles; por fim, mera extensão ou ampliação de sentido (LACERDA, 2009).
Émile Durkheim
David Émile Durkheim (1858-1917) foi um sociólogo, antropólogo, cientista político, psicólogo social e filósofo francês. Formalmente, tornou a Sociologia uma ciência e, com Karl Marx (1818-1883) e Max Weber (1864-1920), é comumente citado como o principal arquiteto da ciência social moderna e pai da Sociologia.
Wilhelm Dilthey
Wilhelm Christian Ludwig Dilthey (1833‐1911) foi um filósofo hermenêutico, psicólogo, historiador, sociólogo e pedagogo alemão. Dilthey lecionou Filosofia na Universidade de Berlim.
Max Weber
Maximilian Karl Emil Weber (1864‐1920) foi um intelectual, jurista e economista alemão considerado um dos fundadores da Sociologia. Seu irmão foi o também famoso sociólogo e economista Alfred Weber.
PESQUISA DE CAMPO
A discussão apresentada anteriormente, que diferencia as ciências sociais das demais ciências físicas, contextualiza o surgimento e o desenvolvimento das técnicas e dos métodos qualitativos de pesquisa social.
Frédéric Le Play (foto), contemporâneo de Comte, foi um dos primeiros a estudar a realidade social dentro de uma perspectiva científica que considerava a observação direta, controlável e objetiva da sociedade como o método mais adequado à pesquisa social. Em La Réforme Sociale en France (1864), Le Play expõe o método das monografias, que se caracteriza por ser uma técnica, ordenada e metódica, de observação direta da sociedade.
Trouxe de sua experiência de mineralogista, na qual estava habituado a colher amostras de jazidas para serem analisadas, a preocupação de observar diretamente e analisar sistematicamente as famílias operárias localizadas nos diferentes países da Europa onde pesquisou. De seus registros minuciosos e ordenados, resultou um conjunto de monografias reunidas em Les ouvriers européens (1855).
No final do século XIX e início do século XX, os estudos dos antropólogos nas sociedades chamadas então de “primitivas” foram determinantes para o desenvolvimento das técnicas de pesquisa que permitem recolher diretamente observações e informações sobre a cultura nativa. As sociedades estudadas diretamente por esses antropólogos eram sociedades sem escrita, longínquas, isoladas, de pequenas dimensões, com reduzida especialização das atividades sociais, tendo sido classificadas como “simples” ou “primitivas” em contraste com a organização “complexa” das sociedades dos pesquisadores.
O primeiro antropólogo a conviver com os nativos foi o americano Lewis Henry Morgan (foto), um dos mais expressivos representantes do pensamento evolucionista. Jurista de formação, em 1851 publicou The League of Hodénosaunee, or Iroquois, considerado o primeiro tratado científico de etnografia.
Mas foram os trabalhos de campo de Franz Boas e Bronislaw Malinowski (respectivamente retratados acima), entre 1883 e 1902, e, particularmente, a expedição às ilhas Trobriand, que consagraram a ideia de que os antropólogos deveriam passar um longo período na sociedade que estão estudando para encontrar e interpretar seus próprios dados, em vez de depender dos relatos dos viajantes, como faziam os chamados “antropólogos de gabinete”.
Nos primeiros trinta anos do século XX, o trabalho de campo passou a orientar as pesquisas antropológicas. Boas, um geógrafo de formação, crítico radical dos antropólogos evolucionistas, ensinou que no campo tudo deveria ser anotado meticulosamente e que um costume só tem significado se estiver relacionado ao seu contexto particular. Ensinou também o “relativismo cultural”: o pesquisador deveria estudar as culturas com um mínimo de preconceitos etnocêntricos.
Para Boas, o que constitui o “gênio próprio” de um povo repousa sobre as experiências individuais e, portanto, o objetivo do pesquisador é compreender a vida do indivíduo dentro da própria sociedade em que vive.
A primeira experiência de campo de Malinowski foi em 1914, entre os mailu, na Melanésia. Impedido de voltar à Inglaterra no início da Primeira Guerra Mundial, ele começou sua pesquisa nas ilhas Trobriand, de 1915 a 1916, retornando em 1917 para viver com os nativos por mais um ano. Essa longa convivência com os nativos teve uma influência decisiva na inovação do método de pesquisa antropológica.
Malinowski demonstrou que o comportamento nativo não é irracional, mas se explica por uma lógica própria que precisa ser descoberta pelo pesquisador. Colocou em prática a observação participante, criando um modelo do que deve ser o trabalho de campo: o pesquisador, por meio de uma estada de longa duração, deve mergulhar profundamente na cultura nativa, impregnando‐se da mentalidade nativa. Deve viver, falar, pensar e sentir como os nativos.
Grande parte da renovação das ciências sociais se deve às influências (diretas ou indiretas) dos métodos de pesquisa de Malinowski. Argonauts of the Western Pacific provocou uma verdadeira ruptura metodológica na Antropologia, priorizando a observação direta e a experiência pessoal do pesquisador no campo.
Frédéric Le Play
Frédéric Le Play (1806-1882) teve uma grande influência no desenvolvimento da sociologia aplicada devido às metodologias que propôs para estudar determinados fenômenos sociais; considerava a família e o orçamento familiar fundamentais para estudar as condições sociais da sociedade em que se encontravam.
Lewis Henry Morgan
Lewis Henry Morgan (1818-1881) foi um antropólogo, etnólogo e escritor norte-americano. Considerado um dos fundadores da antropologia moderna, fez pesquisa de campo entre os iroqueses, de onde retirou material para sua reflexão sobre cultura e sociedade.
Franz Boas
Franz Uri Boas (1858-1942) foi um antropólogo teuto-americano e um dos pioneiros da antropologia moderna que tem sido chamado de "Pai da Antropologia Americana". Estudando na Alemanha, Boas foi premiado com um doutorado em Física em 1881, enquanto estudava Geografia.
Bronislaw Malinowski
Bronislaw Kasper Malinowski (1884-1942) foi um antropólogo polonês. É considerado um dos fundadores da Antropologia social. Atuando na London School of Economics, fundou a Escola Funcionalista. Suas grandes influências incluíam James Frazer e Ernst Mach.
Malinowski, considerado o pai do funcionalismo, acreditava que cada cultura tivesse como função a satisfação das necessidades básicas dos indivíduos que a compõem, criando instituições capazes de responder a essas necessidades. A análise funcional consiste em verificar todo fato social do ponto de vista das relações de interdependência que ele mantém, sincronicamente, com outros fatos sociais no interior de uma totalidade.
Inovação do método de pesquisa antropológica
Argonauts of the Western Pacific, publicado em 1922, é um verdadeiro tratado sobre o trabalho de campo. A convivência íntima com os nativos passou a ser considerada o melhor instrumento de que o antropólogo dispõe para compreender “de dentro” o significado das lógicas particulares características de cada cultura.
Saiba mais
Boas foi o grande mestre da antropologia americana na primeira metade do século XX. Formou toda uma geração de antropólogos importantes no campo, como Ralph Linton, Ruth Benedict e Margaret Mead, considerados representantes da antropologia cultural americana, que utiliza métodos e técnicas de pesquisa qualitativa somados a modelos conceituais próximos da Psicologia e da Psicanálise.
Ralph Linton
Ralph Linton (1893-1953) foi um respeitado antropólogo americano de meados do século XX, particularmente lembrado por seus textos O Estudo do Homem e A Árvore da Cultura. Uma das principais contribuições de Linton para a Antropologia foi definir uma distinção entre status e papel.
Ruth Benedict
Ruth Benedict (1887-1948) foi uma antropóloga americana, iniciou sua graduação na Universidade de Columbia em 1919. Lá, entrou em contato com Franz Boas e se tornou PhD. Em 1923, tornou-se membro da mesma universidade. São de autoria de Boas muitos trabalhos clássicos, inclusive Raça, Linguagem e Cultura – provavelmente o mais veemente texto antirracista a surgir do mundo acadêmico em sua época.
Margaret Mead
Margaret Mead (1901-1978) foi uma antropóloga cultural norte-americana. Nasceu na Pensilvânia, criada na localidade de Doylestown por um pai professor universitário e uma mãe ativista social. Graduou-se no Barnard College em 1923 e fez doutorado na Universidade de Columbia em 1929.
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MÓDULO 2
Reconhecer a importância da análise de dados para a pesquisa acadêmica no âmbito das análises quantitativa e qualitativa
Ligando os Pontos
Você sabe reconhecer a importância da análise de dados para a pesquisa acadêmica no âmbito das análises quantitativa e qualitativa? Para entendermos os conceitos envolvidos, vamos tomar por base uma situação prática do mundo contemporâneo.
Para tanto, vamos analisar o case a seguir:
Diante da pandemia da covid-19, Josué, que cursa uma pós em Saúde Coletiva, resolveu fazer seu trabalho final a respeito das sequelas dessa doença na população idosa.
Para tal, fez um levantamento do número de idosos que adquiriu a doença e o grupo que apresentou alguma sequela e que segue em tratamento.
Josué optou por fazer um recorte temporal e analisou apenas os anos de 2020 e 2021. Como fonte de pesquisa, utilizou os números divulgados pelas secretarias estaduais de saúde.
Após a leitura do case, é hora de aplicar seus conhecimentos! Vamos ligar os pontos?
3. Josué, em sua pesquisa sobre os idosos atingidos pela covid-19, buscou explicitar claramente seu objeto. Para você, como orientador, a abordagem quantitativa colabora para a análise de Josué? Explique.
Josué escolheu o método adequado para lidar com uma grande quantidade de dados/informações. A definição do objeto de estudo deve ser realizada de forma clara pelo pesquisador, para que outros pesquisadores possam avaliar e questionar as conclusões obtidas. A escolha do objeto está relacionada a um problema central deste tipo de abordagem: a questão da representatividade do caso escolhido. A pesquisa quantitativa é a maneira de questionar determinado grupamento e/ou alvo em busca de dados numéricos para validar hipóteses, rejeitá-las ou a título informativo.
ANÁLISE DOS DADOS: DA FASE DA COLETA À INTERPRETAÇÃO
Agora vamos nos aprofundar um pouco mais na pesquisa de campo e como ela acontece. Isso possibilitará que você encontre a melhor metodologia para realizá-la quando estiver elaborando seu próprio projeto de pesquisa ou mesmo já buscando os dados de seu objeto. Para isso, continuaremos aproveitando a experiência antropológica citada.
Malinowski sugeriu três questões para o trabalho de campo:
Por meio do contato íntimo com a vida nativa, exaustivamente registrado no diário de campo, Malinowski buscou as respostas dessas questões preocupando‐se em compreender o ponto de vista nativo.
Para Malinowski, a Antropologia era o estudo segundo o qual, compreendendo o “primitivo”, poderíamos chegar a compreender melhor a nós mesmos. A rica experiência de campo de Malinowski, assim como suas propostas metodológicas, influenciaram decisivamente a aplicação de técnicas e métodos de pesquisa qualitativa em ciências sociais.
Na década de 1970, surge nos EUA, inspirada na ideia weberiana de que a observação dos fatos sociais deve levar à compreensão (e não a um conjunto de leis), a antropologia interpretativa. Um dos principais representantes da abordagem interpretativa é Clifford Geertz, que propõe um modelo de análise cultural hermenêutico: o antropólogo deve fazer uma descrição em profundidade (descrição densa) das culturas como “textos” vividos, como “teias de significados” que devem ser interpretados.
De acordo com Geertz (1978), os “textos” antropológicos são interpretações sobre as interpretações nativas, já que os nativos produzem interpretações de sua própria experiência. Essa perspectiva se traduz em um permanente questionamento do antropólogo a respeito dos limites de sua capacidade de conhecer o grupo que estuda, e na necessidade de expor, em seu texto, suas dúvidas, perplexidades e os caminhos que levaram à sua interpretação, percebida sempre como parcial e provisória.
Clifford Geertz
Clifford James Geertz (1926-2006) foi um antropólogo estadunidense, professor emérito da Universidade de Princeton, em Nova Jersey, nos Estados Unidos. Seu trabalho no Institute for Advanced Study de Princeton se destacou pela análise da prática simbólica no fato antropológico.
Geertz inspirou a tendência atual da chamada antropologia reflexiva (ou pós‐interpretativa), que propõe uma autorreflexão a respeito do trabalho de campo nos seus aspectos morais e epistemológicos. Essa antropologia questiona a autoridade do texto antropológico e propõe que o resultado da pesquisa não seja fruto da observação pura e simples, mas de um diálogo e de uma negociação de pontos de vista entre pesquisador e pesquisados.
Partindo do princípio de que o ato de compreender está ligado ao universo existencial humano, as abordagens qualitativas não se preocupam em fixar leis para se produzir generalizações. Os dados da pesquisa qualitativa objetivam uma compreensão profunda de certos fenômenos sociais apoiados no pressuposto da maior relevância do aspecto subjetivo da ação social. Contrapõem‐se, assim, à incapacidade da estatística de dar conta dos fenômenos complexos e da singularidade dos fenômenos que não podem ser identificados por meio de questionários padronizados.
Atenção
Enquanto os métodos quantitativos supõem uma população de objetos comparáveis, os métodos qualitativos enfatizam as particularidades de um fenômeno em termos de seu significado para o grupo pesquisado. É como um mergulho em profundidade dentro de um grupo “bom para pensar” questões relevantes para o tema estudado.
O reconhecimento da especificidade das ciências sociais conduz à elaboração de um método que permita o tratamento da subjetividade e da singularidade dos fenômenos sociais. Com esses pressupostos básicos, a representatividade dos dados na pesquisa qualitativa em ciências sociais está relacionada à sua capacidade de possibilitar a compreensão do significado e a “descrição densa” dos fenômenos estudados em seus contextos e não à sua expressividade numérica.
A quantidade é, então, substituída pela intensidade, pela imersão profunda — através da observação participante por um longo período, das entrevistas em profundidade, da análise de diferentes fontes que possam ser cruzadas — que atinge níveis de compreensão que não podem ser alcançados por meio de uma pesquisa quantitativa.
O pesquisador qualitativo buscará casos exemplares que possam ser reveladores da cultura em que estão inseridos. O número de pessoas é menos importante do que a insistência em enxergar a questão sob várias perspectivas. Observar aspectos diferentes, sob enfoques diversos, pode não só contribuir para reduzir o bias da pesquisa, como também propiciar uma compreensão mais profunda do problema estudado.
Grande parte dos problemas metodológicos da pesquisa qualitativa é decorrente da tentativa de se ter como referência o modelo positivista das ciências naturais, não se levando em conta a especificidade dos objetos de estudo das ciências sociais. Os dados qualitativos consistem em descrições detalhadas de situações, com o objetivo de compreender os indivíduos em seus próprios termos. Esses dados não são padronizáveis como os dados quantitativos, obrigando o pesquisador a ter flexibilidade e criatividade no momento de coletá‐los e analisá‐los.
Duas pesquisadoras destacam-se nesse cenário:
Ruth Cardoso (1986) apontou para a falta de uma crítica teórico‐metodológica consistente no campo das ciências sociais e para algumas das armadilhas e limitações das pesquisas qualitativas. A autora descreve um “indisfarçado pragmatismo”, que dominou as ciências sociais contemporâneas e desqualificou o debate sobre os compromissos teóricos que cada método exige.
Eunice Durham (1986) concorda com essa crítica e mostra a preocupação dos pesquisadores em descobrirem uma aplicação imediata e direta dos resultados de sua pesquisa que beneficie a população estudada. Sem deixar de ver como necessária a identificação do pesquisador com seu objeto, porque sem ela é impossível a compreensão “de dentro”, Durham adverte para o risco de se explicar a sociedade por meio das categorias “nativas”, sem uma análise científica sobre elas e sem uma reflexão teórica e metodológica sobre a postura do cientista social.
Ruth Cardoso
Na área da Antropologia, Ruth Cardoso (1930-2008) recebeu alguns títulos acadêmicos pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). Em 1952, formou-se em bacharelado e licenciatura em Ciências Sociais, continuando, em 1959, o mestrado em Sociologia e, em 1972, concluindo o doutorado em Ciências Sociais. Em 1988, obteve pós-doutorado pela Columbia University e New York University, em Nova York, nos Estados Unidos.
Eunice Durham
Graduou-se em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1954), instituição onde também cursou o mestrado em Ciência Social (Antropologia Social) em 1964 e o doutorado em Ciência Social (Antropologia Social) em 1967.
Aaron Cicourel e Mariza Peirano apresentam dois importantes alertas:
Aaron Cicourel
Aaron Victor Cicourel, professor emérito de Sociologia da Universidade da Califórnia, San Diego, é especializado em Sociolinguística, comunicação médica, tomada de decisão e socialização infantil. No início de sua carreira, ele foi intelectualmente influenciado por Alfred Schütz (1899-1959), Erving Goffman (1922-1982) e Harold Garfinkel (1917-2011).
Mariza Peirano
Formou-se em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1970. Em 1975, concluiu o mestrado em Antropologia Social na Universidade de Brasília, realizando um estudo em uma comunidade na costa do Ceará. Em 1980, Mariza Peirano concluiu o doutorado em Antropologia na Universidade de Harvard. Sua tese de doutorado, The anthropology of Anthropology: the brazilian case, foi orientada por David Maybury-Lewis (1929-2007).
Cicourel (1980) já havia advertido para o perigo de o pesquisador ficar tão envolvido com o grupo estudado que poderia se tornar um “nativo”, sem compreender as consequências desta “conversão” para os objetivos da pesquisa, como, por exemplo, “tornar‐se cego para muitas questões importantes cientificamente”. Cicourel aponta para as faltas de regras processuais claras que definam o papel do pesquisador no campo desde o momento de sua inserção.
Mariza Peirano (1995), em A favor da etnografia, afirma que não se pode ensinar a fazer pesquisa de campo como se ensinam os métodos estatísticos, as técnicas de surveys (tipo de investigação quantitativa, baseada principalmente na coleta de dados), a aplicação de questionário. A pesquisa qualitativa depende da biografia do pesquisador, das opções teóricas, do contexto mais amplo e das imprevisíveis situações que ocorrem no dia a dia da pesquisa.
Leia maisUm dos principais problemas a ser enfrentado na pesquisa qualitativa diz respeito à possível contaminação dos seus resultados em função da personalidade do pesquisador e de seus valores. O pesquisador interfere nas respostas do grupo ou do indivíduo que pesquisa. A melhor maneira de controlar essa interferência é ter a consciência de como sua presença afeta o grupo e até que ponto esse fato pode ser minimizado ou, inclusive, analisado como dado da pesquisa.
Maria Isaura Pereira de Queiroz (1983) enfatiza que a omissão de fatos, de ocorrências, de detalhes pode ser tão significativa quanto a sua inclusão nos depoimentos. Para a autora, o importante não é verificar se o entrevistado conhece ou não o fato, mas sim buscar saber por que razão ele o havia esquecido, ou o havia ocultado, ou simplesmente dele não tivera registro.
Maria Isaura Pereira de Queiroz
Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018) foi uma socióloga brasileira e escritora premiada com o Prêmio Jabuti de 1967. Reconhecida nacional e internacionalmente por seus trabalhos com Ciências Sociais, foi professora da Universidade de São Paulo.
Resumindo
O pesquisador deve estabelecer um difícil equilíbrio para não ir além do que pode perguntar, mas, também, não ficar aquém do possível. Além disso, a memória é seletiva, a lembrança diz respeito ao passado, mas se atualiza sempre a partir de um ponto do presente.
As lembranças não são falsas ou verdadeiras, simplesmente contam o passado através dos olhos de quem o vivenciou. Um trabalho de negociação e compromisso, como afirma Michael Pollak (1896), que consiste em interpretar, ordenar ou rechaçar (temporária ou definitivamente) toda experiência vivida de maneira a torná‐la coerente com uma identidade construída.
Michael Pollak
Michael Pollak (1948-1992) estudou Sociologia na Universidade de Linz e escreveu uma tese sob a orientação de Pierre Bourdieu (1930-2002). Em 1982, trabalhou nas condições de vida em campos de concentração e conduziu entrevistas com sobreviventes. Ele também estudava o estilo de vida dos homossexuais. Em 1985, lançou a primeira pesquisa sobre AIDS na França. No final da década de 1980, desenvolveu estudos sobre a história das tecnologias de pesquisa em colaboração com Alain Desrosières (1940-2013), com foco nas pesquisas realizadas por Max Weber na Prússia Oriental.
Existem algumas qualidades essenciais que o pesquisador deve possuir para ter sucesso em suas entrevistas: interesse real e respeito pelos seus pesquisados, flexibilidade e criatividade para explorar novos problemas em sua pesquisa, capacidade de demonstrar compreensão e simpatia por eles, sensibilidade para saber o momento de encerrar uma entrevista ou “sair de cena” e, como lembra Paul Thompson (1992), principalmente, disposição para ficar calado e ouvir.
Paul Thompson
Paul Thompson é professor aposentado de Sociologia da Universidade de Essex; é um dos pioneiros da história oral na Grã-Bretanha e atualmente uma das autoridades mundiais na reflexão e na utilização desse método para o registro histórico. Dirige a National Life Story Collection, da Biblioteca Nacional de Londres.
Atenção
Thompson, ao analisar a situação de entrevista, afirma que quem não consegue parar de falar nem resistir à tentação de discordar do informante e de impor suas próprias ideias, obterá informações inúteis ou enganosas.
Howard Becker admite que, no lugar de procedimentos uniformes, prefere um modelo artesanal de ciência, no qual cada pesquisador produz as teorias e técnicas necessárias para o trabalho que está sendo feito.
Howard Becker
Howard Saul Becker é um sociólogo norte-americano que fez grandes contribuições à sociologia do desvio, sociologia da arte e sociologia da música. Becker também escreveu extensivamente sobre estilos e metodologias de escrita sociológica. O livro de Becker, Outsiders, de 1963, forneceu as bases para a teoria da rotulagem.
Becker (1997) alerta que a escolha das teorias que orientam a pesquisa também está contaminada pelas preferências e dificuldades do pesquisador, já que uma organização ou um grupo pode ser visto de muitas maneiras diferentes, nenhuma delas certa ou errada, visto que são alternativas possíveis e talvez complementares. Não é possível formular regras precisas sobre as técnicas de pesquisa qualitativa porque cada entrevista ou observação é única: depende do tema, do pesquisador e de seus pesquisados.
A delimitação do objeto de estudo deve ser claramente explicitada pelo pesquisador para que outros pesquisadores analisem as conclusões obtidas. A escolha do objeto está relacionada a um problema central deste tipo de abordagem: a questão da representatividade do caso escolhido.
Ao contrário das pesquisas quantitativas, em que a representatividade se estabelece através de procedimentos claros, não existem regras precisas para a escolha de um caso a ser estudado de maneira aprofundada pelo cientista social. A exemplaridade de um indivíduo ou grupo e a possibilidade de explorar um problema em profundidade em uma instituição ou família são alguns dos motivos que levam à escolha do objeto de estudo. Essa escolha depende, fortemente, da sensibilidade e experiência do pesquisador e não apenas de características objetivas do grupo estudado.
O pesquisador deve:
Apresentar claramente as características do indivíduo, da organização ou do grupo que foram determinantes para sua escolha, de tal forma que o leitor possa tirar suas próprias conclusões sobre os resultados e a sua possível aplicação em outros grupos ou indivíduos em situações similares.
Explicitar as dificuldades e os limites da pesquisa, as pessoas que o ajudaram em sua entrada no campo (que são determinantes para a construção da identidade do pesquisador pelo grupo estudado), as pessoas que se recusaram a dar entrevistas, as perguntas que não foram respondidas pelos pesquisados, as contradições apresentadas, a (in)consistência das respostas, possibilitando uma visão ampla do estudo e não apenas dos aspectos que “deram certo”.
O fato de ter uma convivência profunda com o grupo estudado pode contribuir para que o pesquisador “naturalize” certas práticas e alguns comportamentos que deveria “estranhar” para compreender. Malinowski chama a atenção para a “explosão de significados” no momento de entrada no campo, em que cada fato observado na cultura nativa é significativo para o pesquisador. O olhar que “estranha”, em um primeiro momento, passa a “naturalizar” em seguida e torna‐se “cego” para dados valiosos.
É comum que pesquisadores se vejam em situações delicadas com o indivíduo ou grupo pesquisado que extrapolam os limites da pesquisa, como pedido de dinheiro ou de favores, convites inapropriados, telefonemas após o término da pesquisa etc. Todos esses problemas, decorrentes do envolvimento intenso com o objeto de estudo, precisam ser administrados pelo pesquisador para que sua pesquisa não fique comprometida.
Quanto mais intensa a relação, maior a necessidade de um “distanciamento” do pesquisador, que torne possível a sua reflexão sobre cada dificuldade que, com certeza, terá de enfrentar.
Resumindo
A questão do relacionamento entre pesquisador e objeto, da possível dependência ou disputa de poder, é um dos maiores problemas que devem ser enfrentados. O pesquisador necessita ter bom senso e criatividade para encaminhar as soluções para cada situação. A experiência e a maturidade do pesquisador são fatores determinantes para que a pesquisa seja bem‐sucedida.
INTEGRAÇÃO DOS DADOS DA ANÁLISE QUANTITATIVA E QUALITATIVA
Muitos pesquisadores que utilizam métodos de pesquisa qualitativos consideram que os surveys apenas servem para dar legitimidade ao senso comum, visto que não contribuem para a compreensão dos fenômenos sociais. Para esses cientistas sociais, os métodos quantitativos simplificam a vida social limitando‐a aos fenômenos que podem ser enumerados. Afirmam que as abordagens quantitativas sacrificam a compreensão do significado em troca do rigor matemático.
Max Weber acreditava que se podia tirar proveito da quantificação na Sociologia, desde que esse método se mostrasse fértil para a compreensão de determinado problema e não obscurecesse a singularidade dos fenômenos que não poderia ser captada por meio da generalização. Como nenhum pesquisador tem condições para produzir um conhecimento completo da realidade, diferentes abordagens de pesquisa podem projetar luz sobre distintas questões. É o conjunto de diversos pontos de vista e de maneiras de coletar e analisar os dados (qualitativa e quantitativamente) que permite uma ideia mais ampla e inteligível da complexidade de um problema.
A integração da pesquisa quantitativa e qualitativa permite que o pesquisador faça um cruzamento de suas conclusões de modo a ter maior confiança de que seus dados não são produto de um procedimento específico ou de alguma situação particular. Ele não se limita ao que pode ser coletado em uma entrevista: pode entrevistar repetidamente, pode aplicar questionários, pode investigar diversas questões em diferentes ocasiões, pode utilizar fontes documentais e dados estatísticos.
A maior parte dos pesquisadores em ciências sociais admite que não há uma única técnica, um único meio válido de coletar os dados em todas as pesquisas.
Há uma interdependência entre os aspectos quantificáveis e a vivência da realidade objetiva no cotidiano. A escolha de trabalhar com dados estatísticos ou com um único grupo ou indivíduo, ou com ambos, depende das questões levantadas e dos problemas que se quer resolver.
É o processo da pesquisa que determina as técnicas e os procedimentos necessários para as respostas que se quer alcançar. Cada pesquisador deve estabelecer os procedimentos de coleta de dados que sejam mais adequados para o seu objeto particular. O importante é ser criativo e flexível para explorar todos os possíveis caminhos e não reificar a ideia positivista de que os dados qualitativos comprometem a objetividade, a neutralidade e o rigor científico.
A combinação de metodologias diversas no estudo do mesmo fenômeno tem por objetivo abranger a máxima amplitude na descrição, explicação e compreensão do objeto de estudo. Parte de princípios que sustentam que é impossível conceber a existência isolada de um fenômeno social. Enquanto os métodos quantitativos pressupõem uma população de objetos de estudo comparáveis, que fornecerá dados que podem ser generalizáveis, os métodos qualitativos poderão observar, diretamente, como cada indivíduo, grupo ou instituição experimenta, concretamente, a realidade pesquisada.
A pesquisa qualitativa é útil para identificar os conceitos e as variáveis relevantes de situações que podem ser estudadas quantitativamente. É inegável a riqueza que pode ser explorada nos casos desviantes da “média” que ficam obscurecidos nos relatórios estatísticos. Também é evidente o valor da pesquisa qualitativa para estudar questões difíceis de quantificar, como os sentimentos, as motivações, as crenças e as atitudes individuais.
Comentário
A premissa básica da integração repousa na ideia de que os limites de um método poderão ser contrabalançados pelo alcance de outro. Os métodos qualitativos e quantitativos, nessa perspectiva, deixam de ser percebidos como opostos para serem vistos como complementares.
Um exemplo de integração de observação participante e survey é o estudo de Neuma Aguiar no Cariri, uma região no sul do Ceará, sobre os modos de organização social da produção e na transformação de três tipos de matéria‐prima.
Neuma Aguiar
Neuma Figueiredo de Aguiar possui graduação em História pela PUC-Rio (1960), mestrado em Sociologia e Antropologia pela Boston University (1962), doutorado em Sociologia pela Washington University (1969) e doutorado em Ciências pela University of Wisconsin-Madison (2003). Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em gênero e sociedade, atuando principalmente nos seguintes temas: gênero e patriarcado, movimentos de mulheres, estratificação e mobilidade social, sociologia internacional comparada e sociologia dos usos do tempo.
A pesquisadora procurou observar as atividades envolvidas na produção do milho, do barro e da mandioca, assim como as representações elaboradas pelos próprios trabalhadores. Aguiar (1978) afirma que os dados da observação participante são profundos na medida em que atingem níveis de compreensão dos fatos sociais não alcançados pelos surveys. Por outro lado, os dados dos surveys atingem um nível de mensuração que a observação participante não pode atingir. A autora propõe que um modo de superar a dificuldade de generalização dos dados qualitativos e a dificuldade de interpretação das correlações alcançadas pelos surveys seja tentar integrar os dois métodos.
Para aumentar a variabilidade dos dados a fim de situar o fenômeno estudado em um contexto mais abrangente, Aguiar propõe que as categorias relevantes, selecionadas por meio do processo de observação participante, sejam empregadas de modo amplo e sistemático com a utilização do questionário. Durante seis meses, a autora estudou, através da observação participante, duas indústrias de produtos cerâmicos e duas indústrias de farinha de milho. Também recolheu, por intermédio de entrevistas e documentos, dados sobre uma fábrica de fécula de mandioca que havia fechado. Foram aplicados, depois disso, 250 questionários.
Atenção
A autora afirma que a generalização não é o único objetivo de sua pesquisa, e que a observação participante foi de fundamental importância para explorar o tema e levantar as hipóteses, para questionar as categorias de seu vocabulário (que não foram compreendidas pelos trabalhadores), para especificar os conceitos e as perguntas de seus questionários. Aguiar demonstra que a combinação do survey com a observação participante possibilitou ir além das generalizações sobre o processo de industrialização na região, e permitiu a compreensão das representações dos trabalhadores sobre suas atividades.
DEPOIMENTO
Outro exemplo de integração de dados qualitativos e quantitativos é a minha pesquisa sobre amantes de homens casados (GOLDENBERG, 1990). Fiz entrevistas em profundidade com oito mulheres, em um primeiro estudo. Em seguida, entrevistei nove homens casados que refletiram sobre as suas experiências extraconjugais. Por fim, realizei um estudo de caso, em que entrevistei o homem casado, sua amante e toda a sua família (pai, mãe, duas irmãs e um irmão). Além desses dados qualitativos, foram fundamentais para as minhas conclusões as análises demográficas feitas por Elza Berquó, a partir dos dados do censo de 1980.
Elza Berquó
Elza é uma das fundadoras da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP), da qual foi presidente e na qual tem ativa participação. Também é membro da International Union for the Scientific Study of Population, da Population Association of America e da Associación Latinoamericana de Población.
Berquó (1989) percebeu que, entre a população com mais de 65 anos, somente 32% das mulheres estavam casadas enquanto 76% dos homens estavam casados. A maior mortalidade dos homens — e o fato de o homem brasileiro se casar com mulheres mais jovens que ele — gera esse desequilíbrio. As mulheres teriam, assim, chances iguais aos homens somente até os 30 anos, no máximo. Berquó levanta a hipótese de que no Brasil exista uma poligamia disfarçada, já que as mulheres sem possibilidades de casamento acabam se unindo a homens casados.
Nesse caso, apenas para ilustrar, os dados quantitativos revelam uma realidade demográfica e as entrevistas em profundidade retratam como cada mulher vivencia essa situação. É interessante como minhas entrevistadas se queixam que “falta homem no mercado”, constatação que pode ser facilmente verificada pelos dados do censo.
Os dados do IBGE sobre idade, sexo e estado civil foram usados para pensar situações complexas, não quantificáveis, como a situação de ser amante de um homem casado. Esses dados ajudaram a interpretar o discurso e a compreender a situação de uma forma mais ampla.
Interpretados à luz da minha questão, concluo que as mulheres têm menos chances de casar e essa pode ser uma possível explicação para a situação da amante. Sem os dados do IBGE, poderia me restringir às explicações dos pesquisados: a ideia de que o fato de ser amante deve corresponder a um tipo determinado de personalidade de mulher “que não se valoriza” ou que “não quer compromisso”. A integração dos dados quantitativos e qualitativos permite verificar a tensão existente entre a “escolha individual” e o “campo de possibilidades” das mulheres que são amantes de homens casados.
Resumindo
Mediante essa análise concreta, é possível demonstrar que a análise e a interpretação dos dados quantitativos e qualitativos podem proporcionar uma melhor compreensão do problema estudado. O conflito entre a pesquisa qualitativa e a quantitativa é artificial. Cada vez mais os pesquisadores estão descobrindo que devem utilizar todos os recursos e as técnicas existentes que possam contribuir para o entendimento do problema estudado.
Pesquisa quantitativa x Pesquisa qualitativa
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Conclusão
Considerações Finais
Antes de finalizarmos, gostaria de trazer uma informação que talvez lhe ajude a compreender a importância de tudo que aqui estudamos. Minha primeira experiência com pesquisa científica foi em 1978, aos 21 anos, quando ingressei no Mestrado de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Após dois anos e meio defendi minha dissertação O deficiente auditivo no mundo do trabalho: um estudo sobre a satisfação profissional. Com a pressão da minha orientadora, que cobrava relatórios semanais, fui a primeira da turma a defender a dissertação.
É preciso registrar a importância dos nossos primeiros orientadores, que nos ensinam a pensar, ter disciplina e escrever corretamente.
A minha verdadeira formação como pesquisadora, no entanto, iniciou-se dez anos depois, em 1988, com o meu doutoramento. Em um ambiente de intensas e calorosas discussões, de professores e alunos brilhantes, encontrei solo fértil para começar a fazer pesquisa na área das chamadas Ciências Humanas ou Ciências Sociais. Desde então, contagiada pelo vírus do “olhar científico”, não consegui parar de pesquisar.
E é exatamente assim que você deve estar se sentindo! Ao trazer toda a reflexão feita em nosso tema para a sua prática de estudante (e futuro pesquisador), você já deve identificar a seriedade de uma pesquisa acadêmica e a importância da utilização de modelos qualitativos e quantitativos – ou a integração deles – de acordo com objeto pesquisado e seus objetivos. E, quem sabe, já esteja contagiado pelo brilho nos olhos, mantendo sempre acesa a chama do olhar científico.
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CONQUISTAS
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Inicialmente a pesquisa foi utilizada dentro de um modelo quantitativo, em que o resultado de um estudo era constatado pela quantidade de pesquisados. Posteriormente, houve a evolução das formas de pesquisa qualitativa, que passou a buscar o aprofundamento da compreensão de um grupo social, de uma instituição, de uma trajetória etc.